sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Pela Hora da Morte

 


--- Trimmmmmmmmmmmmm !

            A sineta do portão alarmou com insistência. Uma, duas vezes. Frederico deitado diagonalmente numa fianga , na sala, não teve pressa. Barriga cheia, havia há pouco degustado uma passarinha acebolada e desmaiara o corpo, na rede, curtindo o banzo. O soar estridente da campainha, por outro lado, não lhe trouxe presságios adicionais. Era um sonido a mais e não lhe bateu na alma como se fora a sineta da escola interrompendo o recreio. Levantou-se com alguma dificuldade, tentando desentalar-se do fundo da rede que quase roçava o chão. Abriu a porta que rangeu, como uma cancela velha na estrada do sítio. Do outro lado, deu com um sujeitinho franzino, arrumadinho, olhos vivos, pasta debaixo do sovaco e um sorriso a meio pau. Na lapela,  um crachá , onde estava escrito,  em letras arqueadas: “Funerária Catacumba de Ouro “ e um pequeno slogan logo abaixo: “Providenciamos até o choro!” . No rodapé do crachá lia-se o nome em negrito do funcionário: Ernestino Braga.

            Enquanto Frederico tentava entender as razões da inusitada visita, Braga, fazendo-se de íntimo, pediu autorização para entrar. Queria ter uma rápida conversa com o morador. Frederico, não escondendo algum contragosto, acedeu. O funcionário de “A Catacumba”, então, abancou-se na sala da frente, abriu a pasta , de lá sacou alguns folhetos e, com língua de camurça, abriu o verbo. Começou elogiando Frederico, perguntando seu nome. Depois, tentou adivinhar a idade do rapaz, claro, descontando ao menos uns quinze anos.

            --- Seu Frederico, a gente vê logo que o senhor está bem de vida e de saúde. Deve ter, se mal me engano, uns 45 anos ! Acertei ?

            Frederico, então, informou que ele errara , já se tornara um Sexy, arcando com seus sessenta e cinco. Foi aí que o vendedor pegou a estrada principal da conversa. Sabia que ele estava bem, mas que tinha familiares, não é mesmo ? Frederico falou da ex esposa e dos três filhos que já não moravam com ele. Tinha ainda uma mãe, velhinha, beirando os noventa. O pai residia já nos álbuns de retratos.

            --- Pois é, seu Frederico. Por isso mesmo é que estou aqui. Sei que todos estão bem, sadios e felizes, mas ninguém sabe o dia de amanhã ! O futuro a Deus pertence ! Venho oferecer ao senhor, que sei que é um homem prevenido, um Plano Funerário. Torço, de coração, para que o senhor e os seus nunca venham utilizar. Mas, é sempre bom ter esse trunfo no bolso nas próximas jogadas do jogo da vida.

            Como Frederico , mesmo calado, tivesse demonstrado algum interesse, perceptível no brilho do olhar, Ernestino  debulhou os Planos oferecidos. Poderiam ser usados por até dez pessoas arroladas por ele. O pagamento, em prestações mensais, deviam se estender por toda vida do contratante.

            --- São três Planos, seu Frederico ! O Plano “A Caminho do Céu”, oferece um caixão de boa qualidade, mas mais simples, assistência funerária na casa do defunto, uma coroa de flores. O Plano “ Conversando com Pedroca”, acrescentará caixão vip, com assistência integral no Centro de Velório do Catacumba, missa de corpo presente e castiçais com velas flamejantes. E, finalmente, o nosso Plano Master, “ Nos bracinhos de Jesus”, com todos os ingredientes oferecidos nos anteriores, aumentando-se uma urna mais chique,  Missa Cantada no Centro de Velório, decoração com flores, acompanhamento musical com violinos, um orador para fazer um discurso de elogios ao falecido e , ainda, cinco carpideiras contratadas, com choro convulsivante, para o dia do sepultamento.

            Por último, Ernestino puxou a tabela de preços que, segundo ele, estava em promoção. “Apesar de terem aumentado muito os preços pelo aumento da demanda nessa pandemia, seu Frederico!” . Ernestino descobriu que morrer estava pela hora da morte. Perguntou sobre a facilidade nos pagamentos .  Kadecista que era, ( e Ernestino também( no meio da conversa ele assim se declarara), quis saber se a conta não poderia extrapolar para outras encarnações. Braga, no entanto, desconversou:

            --- Tem que ser tudo acertado nessa mesma, seu Frederico. Nas outras não dá certo, não !  O senhor pode voltar como um pé rapado ou um velhaco desgraçado e aí , como vamos receber a conta ?.  Além de tudo, o senhor já vai precisar de outro serviço quando morrer de novo, aí vai acumular. E não tem nem como , em caso de inadimplência, a gente pegar a mercadoria de volta. Por outro lado, se o senhor for um Espírito de Luz e não mais retornar a este mundo de expiação, como diabos a “Catacumba de Ouro” vai poder fazer a  cobrança ?

--  E aí ? Como é ? Plano A, B ou C ?  Posso tirar a nota ?

 

Crato, 12/02/2021     

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