sexta-feira, 12 de junho de 2020

A Fragrância dos Cios



Patrolino  despertou em meio ao anúncio da TV. Em tempos de pandemia, aquela telinha  era ,praticamente,  seu único refúgio: um meio seguro , mas insípido, de se comunicar com o resto do mundo. Estava há dois meses preso como se houvesse atrasado a pensão alimentícia.  Acostumado com emoções fortes no trabalho, era contador de um firma grande, de repente, como na brincadeira de “Estátua”,  viu-se paralisado.  Sessenta dias confinado naquele apartamento tão pequeno que até seu basset , para adquirir uma pulga nova, precisava mudar de casa. A única companhia do nosso Patrolino, era o “Queiroz”: o cachorro foi batizado depois de empreender sua quinta fuga, escondendo-se nas redondezas, à procura de alguma cadela no cio, para o desespero do nosso contador. Separado há mais de dez janeiros de D. Mundinha, que o tolerou por mais de trinta anos, Patrolino, já sessentão,  vivia naquela clausura. Mas resolveu, definitivamente, que não queria mais relacionamento sério com quem quer que fosse. Passou a comprar o amor verdadeiro de profissionais: Basta de neófitas e estagiárias! -- gritou um dia. O comércio amoroso , entendeu, não era coisa para principiantes.
                                   Naquele dia, no entanto, bateu-lhe um banzo logo depois que o anúncio de TV saltou-lhe aos olhos. Apresentava , melosamente, presentes possíveis para o “Dia dos Namorados”. De dentro de Patrolino reverberou um vazio, como se do sótão da sua alma tivesse desaparecido um brinquedo de infância : seu velocípede. Faltava-lhe, embora não pressentisse, alguém que dividisse com ele a cama, mas também ajudasse a descascar a mala de abacaxis que todos nós vamos acumulando nas despensas da vida. E, claro, resolver aqueles problemas que não existiriam se ele fosse solteiro.  Passou a lembrar da lista de namoradas que percorreram seus caminhos. Fátima, a primeira  da adolescência, aquela de olhos negros como cambuí em noite de chuva; Geronilda , a mocinha da padaria por quem um dia baixou os quatro pneus e até o estepe; Safira, nome de pedra preciosa, bonita como um jumento novo, colega de trabalho, que um dia lhe deixou , fazendo jus ao nome, por um cliente endinheirado. Interessante é que recordava com doçura de todas elas. Namoros de amassos e arrochos , de mãos bobas e sabidas, mas que nunca chegaram além da superfície. Paixão dérmica ! Naqueles tempos, ir além do esfregaço, caía , imediatamente em dois poços: no pé do padre ou na alça da garruncha. Patrolino pensou consigo o que era o mais incompreensível : a lembrança mais doce, vinha de uma colega de escola que nunca tinha, inclusive, namorado, por recusa inteira de Florência ( era assim que ela se chamava). Ficou na boca, eternizado, o gosto saboroso da fruta que nunca pode morder.
                                   Preso em casa, com medo dos vírus e ele sabia que velho é o bicho mais pegador que existe nesse mundo, só que de doença, Patrolino lembrou das redes sociais. Onde andariam as antigas amadas ? Estariam vivas , solteiras, viúvas ? Começou a fuçar o facebook que é o bicho mais fofoqueiro que existe nesse mundo. E ainda falavam de D. Vitalina que morava ali em frente, pensou ele !  À medida que  passava de página em página, ia lhe batendo um desapontamento. Primeiro , já não eram os retratos antigos que guardara na cabeça os que encontrava agora no computador. Dera cupim e caruncho nas meninas. A Safira já não mais brilhava, morava na periferia de uma cidade próxima, o marido, antes próspero comerciante, agora tinha um vendinha. Geronilda, encontrou-a em São Paulo, já avó, com família grande e, pelo jeitão, vivia bem e sem atropelos. Os olhos guardavam ainda um pouco do brilho juvenil, mas a ferrugem dos anos tinha deixado suas cicatrizes. Não encontrou Fátima nas redes, mas, cavucando as páginas de parentes conhecidos,  soube que tinha partido em viagem celestial cinco anos atrás. Percebendo a inexorabilidade do tempo,  imaginou: tomara que elas não me procurem no Face ! Vão ter a mesma sensação que tive ? Patrolino tá só o caco ?
                                    No meio dessas elucubrações, o telefone tocou. Sabe-se lá porque, no íntimo, como numa premonição, Patrolino imaginou uma possibilidade remota, mas quem sabe, possível . Seria Florência, agora divorciada, nestes dias dos namorados, teria lembrado dele?  As águas passadas poderiam mover as palhetas dos seus moinhos , até porque, em verdade, tinham ficado meio estáticas e jamais escorrido por debaixo da ponte. Trêmulo, atendeu o telefone, uma voz feminina suave saltou lá de dentro. Perguntou se era Patrolino Alencar, o contador. A entonação lhe pareceu inesquecível e seus olhos quase que turvaram. Foi como se seu coração tivesse clicado no link  1972. A mocinha continuou, deu-lhe bom dia, perguntou se morava aqui mesmo no Crato, como estava passando neste período de pandemia... Ele respondeu com voz trêmula, pronto para perguntar-lhe o nome , aquela que ficara dormência  a tantos e tantos anos  e a agora estava prestes a florir e frutificar.  Finalmente teve a coragem e balbuciou:
                                   -- Quem está falando é a minha Florência ? Feliz dia dos Namorados !
                                   --- Não, meu senhor ! Desculpe! Meu nome é Geraldina, é sobre um boleto atrasado seu aqui da Loja Macavi !
                                   Queiroz latiu  lá do seu canto, quase como uma zombaria. Armava planos para escapulir novamente imantado pela fragrância dos cios.

Crato, 12 /06/2020
                                     

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