Patrolino despertou em meio ao anúncio da TV. Em tempos
de pandemia, aquela telinha era ,praticamente,
seu único refúgio: um meio seguro , mas
insípido, de se comunicar com o resto do mundo. Estava há dois meses preso como
se houvesse atrasado a pensão alimentícia. Acostumado com emoções fortes no trabalho, era
contador de um firma grande, de repente, como na brincadeira de “Estátua”, viu-se paralisado. Sessenta dias confinado naquele apartamento
tão pequeno que até seu basset , para adquirir uma pulga nova, precisava mudar
de casa. A única companhia do nosso Patrolino, era o “Queiroz”: o cachorro foi
batizado depois de empreender sua quinta fuga, escondendo-se nas redondezas, à
procura de alguma cadela no cio, para o desespero do nosso contador. Separado
há mais de dez janeiros de D. Mundinha, que o tolerou por mais de trinta anos,
Patrolino, já sessentão, vivia naquela
clausura. Mas resolveu, definitivamente, que não queria mais relacionamento
sério com quem quer que fosse. Passou a comprar o amor verdadeiro de
profissionais: Basta de neófitas e estagiárias! -- gritou um dia. O comércio
amoroso , entendeu, não era coisa para principiantes.
Naquele dia,
no entanto, bateu-lhe um banzo logo depois que o anúncio de TV saltou-lhe aos
olhos. Apresentava , melosamente, presentes possíveis para o “Dia dos Namorados”.
De dentro de Patrolino reverberou um vazio, como se do sótão da sua alma tivesse
desaparecido um brinquedo de infância : seu velocípede. Faltava-lhe, embora não
pressentisse, alguém que dividisse com ele a cama, mas também ajudasse a
descascar a mala de abacaxis que todos nós vamos acumulando nas despensas da
vida. E, claro, resolver aqueles problemas que não existiriam se ele fosse
solteiro. Passou a lembrar da lista de
namoradas que percorreram seus caminhos. Fátima, a primeira da adolescência, aquela de olhos negros como
cambuí em noite de chuva; Geronilda , a mocinha da padaria por quem um dia
baixou os quatro pneus e até o estepe; Safira, nome de pedra preciosa, bonita
como um jumento novo, colega de trabalho, que um dia lhe deixou , fazendo jus
ao nome, por um cliente endinheirado. Interessante é que recordava com doçura de
todas elas. Namoros de amassos e arrochos , de mãos bobas e sabidas, mas que
nunca chegaram além da superfície. Paixão dérmica ! Naqueles tempos, ir além do
esfregaço, caía , imediatamente em dois poços: no pé do padre ou na alça da garruncha.
Patrolino pensou consigo o que era o mais incompreensível : a lembrança mais
doce, vinha de uma colega de escola que nunca tinha, inclusive, namorado, por
recusa inteira de Florência ( era assim que ela se chamava). Ficou na boca,
eternizado, o gosto saboroso da fruta que nunca pode morder.
Preso em
casa, com medo dos vírus e ele sabia que velho é o bicho mais pegador que existe
nesse mundo, só que de doença, Patrolino lembrou das redes sociais. Onde
andariam as antigas amadas ? Estariam vivas , solteiras, viúvas ? Começou a
fuçar o facebook que é o bicho mais fofoqueiro que existe nesse mundo. E ainda
falavam de D. Vitalina que morava ali em frente, pensou ele ! À medida que passava de página em página, ia lhe batendo um
desapontamento. Primeiro , já não eram os retratos antigos que guardara na
cabeça os que encontrava agora no computador. Dera cupim e caruncho nas
meninas. A Safira já não mais brilhava, morava na periferia de uma cidade
próxima, o marido, antes próspero comerciante, agora tinha um vendinha. Geronilda,
encontrou-a em São Paulo, já avó, com família grande e, pelo jeitão, vivia bem
e sem atropelos. Os olhos guardavam ainda um pouco do brilho juvenil, mas a
ferrugem dos anos tinha deixado suas cicatrizes. Não encontrou Fátima nas
redes, mas, cavucando as páginas de parentes conhecidos, soube que tinha partido em viagem celestial
cinco anos atrás. Percebendo a inexorabilidade do tempo, imaginou: tomara que elas não me procurem no
Face ! Vão ter a mesma sensação que tive ? Patrolino tá só o caco ?
No
meio dessas elucubrações, o telefone tocou. Sabe-se lá porque, no íntimo, como
numa premonição, Patrolino imaginou uma possibilidade remota, mas quem sabe, possível
. Seria Florência, agora divorciada, nestes dias dos namorados, teria lembrado
dele? As águas passadas poderiam mover
as palhetas dos seus moinhos , até porque, em verdade, tinham ficado meio
estáticas e jamais escorrido por debaixo da ponte. Trêmulo, atendeu o telefone,
uma voz feminina suave saltou lá de dentro. Perguntou se era Patrolino Alencar,
o contador. A entonação lhe pareceu inesquecível e seus olhos quase que
turvaram. Foi como se seu coração tivesse clicado no link 1972. A mocinha continuou, deu-lhe bom dia,
perguntou se morava aqui mesmo no Crato, como estava passando neste período de
pandemia... Ele respondeu com voz trêmula, pronto para perguntar-lhe o nome ,
aquela que ficara dormência a tantos e
tantos anos e a agora estava prestes a
florir e frutificar. Finalmente teve a
coragem e balbuciou:
-- Quem está
falando é a minha Florência ? Feliz dia dos Namorados !
--- Não, meu
senhor ! Desculpe! Meu nome é Geraldina, é sobre um boleto atrasado seu aqui da
Loja Macavi !
Queiroz latiu
lá do seu canto, quase como uma
zombaria. Armava planos para escapulir novamente imantado pela fragrância dos
cios.
Crato, 12 /06/2020
Nenhum comentário:
Postar um comentário