sexta-feira, 27 de março de 2020

A borda e o brilho do pélago




“De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama
De repente não mais que de repente”
                                      Vinicius de Moraes

                                   Na beira da praia, o menino encanta-se com a paisagem, aparentemente,  fixa aos seus olhos: as ondas que quebram na areia, os coqueiros que balançam no chicote do vento, uma nesga de lua que, úmida, afigura-se como se saindo do banho. A roldana do tempo, no entanto, não cessa de trabalhar. A vida é móvel  como as dunas.   Nossos olhos de adultos, também,  carregam consigo a aparente e enganosa estabilidade  das nossas paisagens vitais. O trabalho extenuante, o oásis da casa, só desfrutável nos fins de noite e de semana, a família que se torna um mero objeto de decoração do apartamento, os amigos raros , opacos pela habitualidade. Tudo parece tão firme, magmático, imutável !  De repente, o nosso mundo dá um cangapé. A roleta da vida, impulsionada pela mão da morte, faz um giro de cento e oitenta graus.
                                   Hoje, o amor já prescinde de abraços, afetos e afagos e a distância firma-se como prova inequívoca de bem-querença. E a lonjura dos próximos e a proximidade dos distantes, impressa pelo smartphone, rápido, passa a ser uma necessária lei universal. O emprego, o trabalho, os bens mais preciosos do Homo labor, perdem o seu valor,  e o ócio, até então um dos pecados capitais, soergue-se, num átimo, ao patamar de virtude e generosidade. A casa, que um dia fez-se  um mero refúgio para as noites curtas e os fins de semana arrastados, torna-se um palácio. O fast-food de ocasião desaparece do mapa e o fogão volta, novamente, a abrasar-se para os almoços e a comidinha caseira. O azáfama da rua perde seu glamour, ressurge o brilho da preguiçosa, do divã, da rede estendida, diagonalmente,  de armador a armador. Acostumados às máscaras invisíveis, nas nossas relações pessoais, subitamente, vemo-nos de faces cobertas, disfarçados e fantasiados para um baile grotesco e tétrico.   Os filhos (já havia pais que nem os mais reconheciam), agora são adotados pela  família. Antes eram raros turistas em casa, residiam na escola, na aula de inglês,  na academia, no hotelzinho, no shopping. Agora é até possível brincar com eles e conversar amenidades e miolo-de-pote ( aquela substância que é o amálgama fundamental das nossas relações humanas). E é até factível vê-los crescerem e se desenvolverem , observando os degradés, os entretons, as modulações de cada uma das estações da sua existência.  O marido tem, de ora em diante, o tempo suficiente para certificar-se de como as nuances da beleza mudam com a idade e que o frescor da esposa que o encantou anos atrás, terminou substituído pela lindeza e o cheiro apetitoso do fruto maduro. Alguns casais irão descobrir que já não habitam o mesmo planeta, que se haviam  separado há muitos e muitos anos, mas a névoa dos dias e o afã dos minutos e segundos haviam funcionado como uma cortina de fumaça: percebem, mais juntos e próximos,  que apenas acompanhavam, displicentemente, o enterro do amor que um dia fizeram arder com vigor e estardalhaço. O vizinho do lado, o padeiro da esquina, o entregador de pizza, o verdureiro de porta em porta, antigamente seres invisíveis e inominados, da noite para o dia, passaram a ter nome, a esboçarem sorrisos, a serem personagens imprescindíveis no grande teatro do viver. Repentinamente, os templos já não são imprescindíveis para a conexão com o divino e o transcendental , já é possível descobrir Deus nas flores do jardim, no pássaro pousado no fio elétrico,  nas minúsculas coisas que nos rodeiam.   O dinheiro, a riqueza, os bens materiais, antigamente perseguidos numa maratona desesperada, por anos e anos, brusco, parecem ter perdido seu sentido. “Na extrema curva do caminho extremo” não faz muita diferença se envergamos um smoking ou um pijama. A borda do abismo traz consigo suas lições de desprendimento: à beira da cremação, que importa se usamos perfume francês ou Leite de Rosas ?
                                   As sombras aterradoras da morte e da peste trazem consigo suas epifanias e revelações. As pedras preciosas que fomos colhendo no caminho, como as de Fernão Dias, eram falsas. O tesouro estava escondido na travessia. Mas  ainda é possível inebriar-nos com o brilho ainda que inverossímil e postiço das pretensas esmeraldas que fomos encontrando nas margens da estrada : de repente, não mais que de repente...

Crato, 26/03/20  


2 comentários:

Viviane de Morais Borges disse...

Um belo texto sobre um momento tão difícil. Hoje faz 10 dias que estou isolada em casa, mas não em mim. Me conecto a Deus, aos amigos espirituais, juntos rezamos e a energia do amor de Deus vai nos acalentando. Muitas lições em poucos dias! Parabéns pelo texto Dr. Sua visão das coisas é profunda e encantadora!

jflavio disse...

Beijo, Vivi ! Daqui um pouquinho tudo volta ao normal ! Sem os vales da vida, como a gente perceberia a beleza dos picos ?