"Sabemos hoje que não há ilhas, e que são vãs as
fronteiras. Sabemos que, num mundo em constante aceleração, quando o Atlântico
se atravessa em menos de um dia ou Moscou contacta com Washington em poucas
horas, estamos obrigados à solidariedade ou à cumplicidade, segundo os casos. Hoje,
a tragédia é coletiva. Sabemos pois todos, sem sombra de dúvida, que a nova
ordem que buscamos não pode ser somente nacional, ou sequer continental, e
muito menos ocidental ou oriental. Ela só pode ser universal.
Camus
As palavras acima são de Albert Camus que
faleceu tão precocemente em 1960. O escritor francês, um Nobel de Literatura (
1957) , escreveu um livro fabuloso que volta a se tornar atual nos dias de
hoje: A Peste. No romance narra a saga de uma pequena cidade atingida por uma
peste bubônica e o pandemônio que se instalou entre os seus habitantes. Visionariamente, a vila chama-se Oran, tão próxima daquela
outra chinesa que disseminou uma das maiores pandemias dos últimos séculos, a
chinesa Wuhan. Instalada a epidemia, como sempre, o pânico torna-se senhor da
situação e é incrível perceber como se repetem os comportamentos , num
salve-se-quem-puder incrível, não tão diferente do que aconteceu com a Peste
Negra na Idade Média ou com nossas epidemias caririenses de Cólera e Varíola na
segunda metade do Século XIX. Com mortalidade e sofrimento inimagináveis em países ricos como China, Itália, Alemanha,
Espanha, a calamidade , de repente, vem bater no nosso portão. O COVID-19 já
espreita suas vítimas com o ar soberbo de um carcará que , do alto da timbaúba ,
observa os pintinhos brincando no terreiro. E o país pára aterrorizado. Escolas
fecham, cinemas, lojas e teatros cerram as portas, países lacram as fronteiras,
pessoas se isolam, num pavor só comparável ao de cem anos atrás quando chegou a
Gripe Espanhola. Só o comandante máximo da nação, na contramão do mundo
inteiro, faz chacota e diz ser tudo histeria e invenção da mídia e do comunismo
para amedrontar o povo.
Há razões mais que suficientes para preocupação.
Primeiro, basta olhar ao redor e ver a carnificina que se abate sobre outras
nações muito mais organizadas e ricas que a nossa. Alguns dirão que Deus é
brasileiro, mas há informações de até ele anda usando máscara e álcool gel.
Claro que não vivemos mais em tempos de Peste Negra, combatendo um inimigo
totalmente desconhecido e tido como um
castigo divino aos despautérios da humanidade. Devemos à Ciência ( tão
perseguida e maltratada pelos atuais governantes e seus terraplanistas) a
possibilidade única de sobreviver a esta ameaça com menos sofrimento e menos
baixas. Sabemos que pela grande possibilidade de contágio, a melhor conduta
sanitária para minimizar a velocidade da epidemia é o isolamento e a
quarentena. E , junto, os cuidados higiênicos fundamentais de lavar as mãos,
usar lenços, limpar superfícies , evitar aglomerações. Aí batemos de cara nos graves problemas de infraestrutura do
Brasil e da nossa recente visão neoliberal onde a desigualdade é tida como uma
coisa normal, até necessária e justa e o
apoio às classes miseráveis e desfavorecidas tido como coisa de esquerdopatas.
Orienta-se a lavagem das mãos com frequência. Sempre é bom lembrar que dois em cada dez brasileiros não tem acesso à água potável. Além do mais , mais de 101 mil pessoas vivem na rua no Brasil, ou seja não têm água à disposição para o consumo e nem têm como se isolar em suas casas, já que moram debaixo de marquises e viadutos. Em 2017, tínhamos um déficit habitacional ( crescente nos últimos anos) de quase 8 milhões de residências. Pensem , por outro lado, na possibilidade de ficar em casa, isolado, por longo período os quase doze milhões de desempregados, na sua maioria sobrevivendo de bicos e virações. Recorde-se ainda que, mesmo nos empregados, 40% estão na informalidade a informalidade , hoje atinge quase 35 milhões de pessoas. Estas pessoas não tem qualquer segurança trabalhista. Como sustentarão as famílias esses pomposamente apelidados de novos empreendedores ? Mesmo os que estavam trabalhando, em 2018, tinham uma renda mínima vergonhosa: 60% ganhavam menos de um salário mínimo. O necessário fechamento das escolas traz ainda um problema adicional. Com quem os pais que irão para o trabalho deixarão seus filhos ? Se deixam aos cuidados dos avós podem aumentar o risco de contaminação do segmento mais frágil nessa epidemia: o da terceira idade. Importante frisar que muitos e muitos estudantes necessitam da merenda escolar para sobrevivência e segurança alimentar. No Brasil existem em torno de 12 milhões de crianças de 0 a 3 anos, mas apenas 3 milhões de vagas disponíveis em creches.
Em relação à nossa estrutura de saúde, a coisa não
é menos preocupante. Só no orçamento deste ano o SUS perdeu mais de R$ 5 bilhões. A
OMS preconiza um número mínimo de 2,5 a 3 leitos de UTI para cada 10.000
habitantes. A UTI é importantíssima numa epidemia como a do Corona. A oferta de leitos aqui tem diminuído nos
últimos tempos. Temos hoje o percentual de 2,1 leitos, mas , na rede pública,
apenas 1 leito para cada 10.000 brasileiros. As regiões mais deficitárias são
as mais pobres: O Nordeste, o Norte e o Centro-Oeste. Para agravar mais a
situação, apenas 10% dos municípios brasileiros têm leitos de UTI públicos ou privados.
Por outro lado, se as determinações da Organização
não tocam sequer o presidente da republiqueta do Brasil e o diretor da ANVISA,
como esperar que cheguem aos quase 12 milhões de brasileiros a quem foi negado
pelo estado, reiteradamente, o direito sagrado da alfabetização e aos outros 38
milhões analfabetos funcionais?
Nos dias de hoje parece uma heresia falar em desigualdade
social. Para o status quo quem não consegue um emprego ou um bom salário é por
mera falta de mérito. Em 2018, a Desigualdade Social no Brasil bateu novo
recorde: 1% da população mais rica tinha rendimento médio mensal de R$
28.000,00 , enquanto 50% da nossa população ganhava a média de R$ 820,00 (
valor abaixo do salário mínimo da época). Em 2012, 5% da população brasileira vivia com apenas R$
56,00 mensais e os 30% mais pobres ( 64 milhões de pessoas) com apenas R$
269,00. Em 2018, essa calamidade piorou
ainda mais.
Tenho
a certeza de que venceremos o inimigo, mas tenho também a clareza de que as baixas seriam menores e os
feridos em menor quantidade se nossos pelotões tivessem armas modernas nas mãos de todos os soldados. Triste
constatar que uns portarão metralhadoras e outros terão apenas baladeiras e bodoques à disposição.
Talvez isso pouco interesse à Casa Grande, mas é
sempre bom lembrar que todos esses fatores estão intimamente ligados à
progressão das epidemias. Nem todos residimos na avenida paulista, como
imaginam alguns políticos sulistas. Temos realidades que vão da Holanda à
África Subsaariana. Nós podemos até pensar que só os miseráveis morrem. Mas as
epidemias são sempre muito socialistas: dizimam, sim, em maior proporção, a pobreza, até porque ela é imensamente mais
numerosa, mas ninguém pode se sentir a salvo e imune às suas garras. Na
epidemia de Gripe Espanhola, no início do Século XX , pereceu Rodrigues Alves,
nosso presidente à época. O Corona sabe,
perfeitamente, que caixão continua não tendo gaveta e mortalha permanece sem
bolsos adicionais.
Crato, 17/03/20
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