A história,
recentemente publicada no New York Times, é destas dignas de um roteiro hollywoodiano.
Uma saga que bafeja de luz e esperança os obscuros tempos que se consubstanciaram
no domínio humano no planeta . Parece tudo uma reedição de uma das lendas de
criação do universo à maneira de Adão & Eva.
David
Wisnia e Helen Spitzer eram
judeus e, presos, encontraram-se no Campo de Extermínio Auschwitz, a azeitada indústria
de morte instalada pelos alemães, no
interior da Polônia, durante a II Guerra
Mundial. Ali, estima-se, mais um milhão de pessoas foram eliminados num dos
maiores açougueiros da humanidade. David, de 17 anos, conseguira algum privilégio no campo, pois era
um cantor de grande qualidade e fez-se animador das festas e confraternizações
do Exército . Helen, 25, também gozava
de prestígio extra pois era designer gráfica e ficou responsável pelos
fardamentos das tropas. Em meio à tragédia e o espectro de morte que os
cercava, começaram a namorar. Encontravam-se, semanalmente, nos celeiros, atrás
dos fornos crematórios e pagavam com comida a algumas pessoas para pastorarem
os guardas e os protegerem nas escapadelas.
Helen tinha acesso a documentos que
circulavam, orientando transferências de presos para outros campos. David, imaginava, que sua amada, de alguma
maneira o protegia. Juraram, depois da guerra, encontrar-se em um local
determinado em Varsóvia. No fim do conflito, já separados, os soldados
os obrigaram a fazer a famosa Marcha da Morte: andarem sem destino, no gelo,
até à exaustão e óbito. Conseguiram, cada um do seu lado, fugir : David
unindo-se ao exército americano e indo morar nos EUA, na casa de uma tia e Helen envolvendo-se com trabalhos
humanitários na Polônia. O encontro
final e previsto em Varsóvia , espargidos os dois pelo destino, nunca
aconteceu. Ambos casaram-se, na sequência
natural de suas vidas. Mesmo de longe,
em contato com sobreviventes, David sabia que Helen, também, havia escapado,
milagrosamente, das garras implacáveis de Auschwitz . E, numa quebrada de asas do destino, terminara
por fixar-se também nos EUA.
O encontro de
Varsóvia aconteceria, nos Estados
Unidos, só 72 anos depois da data
prevista. Velhinhos, alquebrados pelas vicissitudes da existência, David
aproximou-se da cama onde Helen estava acamada há já alguns anos, cega e com
dificuldades na audição. Ao ouvir as palavras de David, no entanto, uma aura de
vida espalhou-se pelo corpo e fez-lhe
quase sentar. David tinha uma pergunta que ficara guardada na garganta por três
quartéis de século. Helen tinha usado a sua influência no campo para salvá-lo?
Ela , simplesmente, elevou a mão e mostrou os cinco dedos indicando quantas
vezes o tinha livrado do forno alemão. Baixinho sussurrou:
Aquela
certeza cortando os céus como uma estrela candente : ante à correnteza da maior dor, do luto, do
tormento, da carnificina, sobrenada, sempre, um pouco de luz, lampejos e
sementes de esperança. David cantou-lhe
uma música húngara que ela havia lhe ensinado em Auschwitz. Helen morreu no ano passado aos
100 anos. Os ecos daquela última canção devem a ter ninado no seu último sono. David,
hoje aos 93, ainda tenta entender como o barco do amor pôde resistir incólume a
tantas tempestades e, um dia, chegar ao porto sonhado... Mastro já roto, velas esfrangalhadas, timão despedaçado e a triste enseada
vazia... Como o Jacó camoniano deve ter imaginado :
Crato, 17/01/20
Um comentário:
Lendo e imaginando como foi tudo...um bálsamo nesse mundo às vezes tão cruel!!!
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