sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Pra Tão Grande amor


A história, recentemente publicada no New York Times, é destas dignas de um roteiro hollywoodiano. Uma saga que bafeja de luz e esperança os obscuros tempos que se consubstanciaram no domínio humano no planeta . Parece tudo uma reedição de uma das lendas de criação do universo à maneira de Adão & Eva.
                                   David Wisnia e Helen Spitzer  eram judeus e, presos, encontraram-se no Campo de Extermínio Auschwitz, a azeitada indústria  de morte instalada pelos alemães, no interior da Polônia,  durante a II Guerra Mundial. Ali, estima-se, mais um milhão de pessoas foram eliminados num dos maiores açougueiros da humanidade. David, de 17 anos,  conseguira algum privilégio no campo, pois era um cantor de grande qualidade e fez-se animador das festas e confraternizações do Exército . Helen, 25,  também gozava de prestígio extra pois era designer gráfica e ficou responsável pelos fardamentos das tropas. Em meio à tragédia e o espectro de morte que os cercava, começaram a namorar. Encontravam-se, semanalmente, nos celeiros, atrás dos fornos crematórios e pagavam com comida a algumas pessoas para pastorarem os guardas e os protegerem nas escapadelas.
Helen tinha acesso a documentos que circulavam, orientando transferências de presos para outros  campos. David, imaginava, que sua amada, de alguma maneira o protegia. Juraram, depois da guerra, encontrar-se em um local determinado em Varsóvia.   No fim do conflito, já separados, os soldados os obrigaram a fazer a famosa Marcha da Morte: andarem sem destino, no gelo, até à exaustão e óbito. Conseguiram, cada um do seu lado, fugir : David unindo-se ao exército americano e indo morar nos EUA, na casa de uma tia  e Helen envolvendo-se com trabalhos humanitários na Polônia.  O encontro final e previsto em Varsóvia , espargidos os dois pelo destino, nunca aconteceu. Ambos casaram-se,  na sequência natural de suas vidas.  Mesmo de longe, em contato com sobreviventes, David sabia que Helen, também, havia escapado, milagrosamente, das garras implacáveis de Auschwitz .  E, numa quebrada de asas do destino, terminara por fixar-se também nos EUA.
                                   O encontro de Varsóvia  aconteceria, nos Estados Unidos, só 72 anos depois da data  prevista. Velhinhos, alquebrados pelas vicissitudes da existência, David aproximou-se da cama onde Helen estava acamada há já alguns anos, cega e com dificuldades na audição. Ao ouvir as palavras de David, no entanto, uma aura de vida espalhou-se  pelo corpo e fez-lhe quase sentar. David tinha uma pergunta que ficara guardada na garganta por três quartéis de século. Helen tinha usado a sua influência no campo para salvá-lo? Ela , simplesmente, elevou a mão e mostrou os cinco dedos indicando quantas vezes o tinha livrado do forno alemão.  Baixinho sussurrou:
                                   -- Eu te esperei em Varsóvia e sempre, sempre, te amei...


                                   Aquela certeza cortando os céus como uma estrela candente :  ante à correnteza da maior dor, do luto, do tormento, da carnificina, sobrenada, sempre, um pouco de luz, lampejos e sementes de esperança.  David cantou-lhe uma música húngara que ela havia lhe ensinado  em Auschwitz. Helen morreu no ano passado aos 100 anos. Os ecos daquela última canção  devem a ter ninado no seu último sono.   David, hoje aos 93, ainda tenta entender como o barco do amor pôde resistir incólume a tantas tempestades e, um dia, chegar ao porto sonhado... Mastro já roto, velas  esfrangalhadas, timão despedaçado e a triste enseada vazia... Como o Jacó camoniano deve ter imaginado :
                                 
                                  -- E mais esperaria, “Se não fora pra tão grande amor, tão curta a vida...”

Crato, 17/01/20

Um comentário:

Unknown disse...

Lendo e imaginando como foi tudo...um bálsamo nesse mundo às vezes tão cruel!!!