sexta-feira, 28 de junho de 2019

Sapatinho de Cristal

Desde pixote o cratense  vê-se imerso numa tese , difundida por parentes e professores , de que teve a felicidade de nascer na cidade da cultura. Não é difícil encontrar as raízes profundas desta catalogação, remexendo o passado da nossa Vila, prenhe de incontáveis pioneirismos. Entoamos os primeiros gritos republicanos já em 1817; editamos o primeiro jornal do interior do Ceará em 1855; criamos o primeiro curso  cearense secundário interiorano : o Seminário São José em 1875; inauguramos o primeiro Cinema do estado, logo depois de Fortaleza,  em 1911; demos ao Nordeste a primeira médica de formação : Amélia Benébien. A Princesa do Cariri, no extremo oposto d e Fortaleza, conseguiu manter uma fortíssima Cultura de Tradição que terminou por irrigar a mente privilegiada de inúmeros artistas das mais variadas linguagens: Teatro, Cinema, Literatura, Música, Dança, Artes Plásticas, Fotografia. O vigor da  Cultura cratense  imantou toda a cidade de Frei Carlos por mais de dois séculos e tornou-se a seiva nutritiva a alimentar os frondosos galhos da nossa árvore. Terá sido, certamente, sua força gravitacional que catapultou a nossa economia, o nosso comércio, a educação, a saúde, o multicolorido das nossas manifestações brincantes. O encolhimento progressivo da nossa fortaleza, nos últimos tempos, coincide, claramente, com o descaso político que se abateu sobre nós nos últimos quarenta anos, quando governantes não entenderam essa nossa vocação natural, abandonaram os rumos claros traçados durante décadas e, divorciados do foco do nosso destino natural, fomos murchando como uma bola de assopro em que se encosta a ponta da agulha. De todas as cidades do Cariri , o Crato foi aquela que sofreu a mais terrível e avassaladora desnutrição, a antiga Princesa, após as badaladas do descaso, travestiu-se em gata borralheira.
                                   As nuvens e fantasmas que assombram nossos dias não parecem dar tréguas. Seguidos Secretário de Cultura, por muitos anos, trabalharam sem qualquer prestígio, sem orçamento determinado, de cuia na mão, mendigando verbas que sempre dependem, diretamente, do prefeito de plantão. Sequer têm o direito sagrado de escolher seus assessores diretos, direito arrestado pelo poder executivo. Conselhos Municipais de Cultura fazem-se mero ornamento desbotado neste horizonte nebuloso: não havendo orçamento determinado, inexistem razões de deliberar sobre a aplicação de valores imaginários. Enquanto isso, instituições tradicionais vivem à míngua, mantidas pela boa vontade de seus associados: SCAC, ICC, Guerrilha do Ato Dramático, Casa Ninho, SOLIBEL e tantos e tantos outros.
                                   Recentemente, emenda do Vereador Amadeu de Freitas pretendeu estabelecer um percentual mínimo de 2% , na Lei de Diretrizes Orçamentárias, da Receita Corrente Líquida do exercício financeiro 2019, para a Cultura. Este percentil não é um número cabalístico, mas um valor estudado cuidadosamente  pelas entidades culturais do Brasil e apresentado às diversas esferas da união.  O resultado não podia ser outro: a proposta foi rejeitada por larga margem, recebeu o voto favorável apenas do proponente da emenda e do vereador Nando Bezerra. Como a independência dos poderes legislativos municipais perece uma obra de mera ficção, depreende-se que o grosso dos nossos vereadores foram orientados a recusar a emenda por ordens superiores.  A Cultura é carta fora do baralho para os políticos da nossa terra.
                                   Tempos sombrios permanecerão imutáveis. O governo federal tem a Cultura como inimiga figadal : coisa de drogados e preguiçosos; Leis de amparo à Cultura são perseguidas mais de que cocaína em aviões presidenciais.  O governo estadual volta-se, historicamente, para a indústria cultural de entretenimento, prefere à Política cultural a cultura da política. O Crato , sem rumo, fora dos trilhos, como um cego no cipoal, posta-se a alimentar vocações que não lhe dizem respeito como o Turismo Religioso. Esquece-se do potencial ecológico da Chapada do Araripe   e de mais de duzentos e cinquenta anos  de um rosário de diamantes estampado por seus artistas mais representativos.
                                   Nossa bela Princesa, passado o encanto das doze badaladas, retornou ao borralho, com seus pajens agora retravestidos de ratos e sua carruagem refeita em abóbora. Deixou um Sapatinho de Cristal pelo caminho, o fio de meada para o reencontro com o príncipe. Mas madrastas mil têm  aparecido, estendido seus olhos de seca-pimenta, escondido os pisantes da Cinderela  e impedido que o conto de fadas tenha um final feliz.

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