sábado, 23 de junho de 2018

A Gruta


A descoberta causou sensação em Matozinho e passou a fazer parte do jornalismo oral da cidade, por muitas e muitas semanas. Afeita à exiguidade de notícias mais pomposas, aquela era um prato feito para alimentar a sempre insaciável curiosidade dos matozenses. O prefeito Sinderval Bandeira mandara alargar a rua principal da cidade que se estendia desde a praça da matriz até às proximidades da prefeitura. Ainda carroçável, pretendia nosso edil torná-la um pouco mais larga e revesti-la com paralelepípedos. Já tinha até fixado , previamente, a placa no nova comemorativa:  “Futura Highhway Pedro Cangati” e logo abaixo : Prazo de entrega : 180 dias,  Orçamento : 3,75  Milhões de Reais. As obras começaram em ritmo de valsa quando, por fim, aconteceu a mais vultosa descoberta do século em Matozinho. Ao escavacar próximo da matriz, de repente, abriu-se uma cratera abaixo do nível da rua e terminaram por encontrar uma gruta, feita de pedras, meticulosamente assentadas. Devia ter mais ou menos uns dez metros de extensão, finalizava com uma espécie de cripta, onde estava exposta, num tipo de altar, uma escultura em pedra tosca, que representava uma figura estranha, de uma metro de altura, gorda como um Buda e com um falus enorme, parecido com uma escultura inca. Adiante do altar existia uma bancada também em pedra , um pouco mais baixa que o esperado e,  adiante, mundurus que sugeriam bancos para uma clientela assistente. A notícia correu como fogos de artifícios em dia de renovação e tornou-se a nova sensação da vila. Professores foram imediatamente convocados para dar um parecer sobre a última descoberta arqueológica em Matozinho. Os pareceres oficiais não batiam. Alguns sugeriram que se tratava de um templo de sacrifícios dos antigos índios capebas que por ali viviam, antes do início da colonização. Outros foram da opinião que a gruta teria sido feita como refúgio de algumas famílias na época do cangaço.  Técnicos convocados da capital , após acurados estudos, dataram a obra de mais ou menos noventa anos atrás, que coincidia com o início da formação da vila e o soerguimento da Igreja de N. S. dos Desafogados de Matozinho, acreditavam que era um possível esconderijo de soldados quando das batalhas ferozes contra os índios Capebas.
                                   Os matozenses  todos tinham versões mais heroicas e épicas sobre a descoberta. Contavam que a gruta havia sido escavada para abrigar Frei Caneca quando da sua escapada de Pernambuco para o Ceará quando houve a derrocada da Confederação do Equador. Ali teria permanecido por uma semana e se não tivesse feito a besteira de colocar a cabeça fora do buraco ainda poderia por ali está vivendo e a história do Brasil poderia ser outra. A figura fálica pagã teria, possivelmente, ter sido colocada em época posterior
                                   As obras da avenida continuaram, pensou-se em fazer um memorial para visitação no local da gruta. Dias depois, no entanto, o prefeito Sinderval Bandeira  mandou, estranhamente,  soterrarem a descoberta e continuarem os trabalhos da avenida. Comentava-se que teria acatado um pedido do bispo diocesano. Comentava-se na cidade que os arqueólogos  da capital, escarafunchando o buraco de Sinderval, tinham encontrado um túnel que o ligava à catedral. Sob o pretenso altar deram com duas ossadas de recém nascidos e, enterradas, junto à bancada que agora viram parecer com uma cama, uma batina  e uma ceroula que tinham gravados o nome do Padre Gumercindo . Deram ainda, juntos,  com uma anágua  e uma calçola identificados com um nome bordado: Hortelina da Madre Deus. Ainda hoje não se sabe bem o que estas indumentárias faziam por lá. Gumercindo havia sido o primeiro pároco da vila de Matozinho e D. Hortelina, pelo que se conta, era a chefe da Ordem Terceira do Carmo, a primeira a gloriosamente chegar àquelas paragens.

Crato, 23/06/2018 

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