Houve um
período em que vivendo no topo das árvores, num dos maiores saltos evolutivos
da nossa história, o primeiro hominídeo decidiu que já era tempo de descer ao
solo e conquistar seu espaço na face da terra. Sabia, de antemão, que eram
mínimas suas possibilidades de sobrevivência: não tinha a velocidade dos
leopardos; faltava-lhe a amplitude de audição dos lobos; seus olhos não se
faziam penetrantes como os do lince e da
águia. Deve ter perecido nas primeiras
tentativas, mas abriu os horizontes para todos os da sua espécie, num leque
inesgotável de possibilidades e de riscos. Sem aquele ímpeto primal, estaríamos
ainda hoje disputando frutos com nossos irmãos chimpanzés e macacos prego. E
durante todo nosso percurso neste planeta, ainda tão curto e tumultuoso, sempre
dependemos dos sucessores visionários daquele hominídeo primal que conseguiu
ver além das fruteiras do seu pomar, que fugiu da estabilidade da matilha e abriu picadas próprias e novas veredas,
mesmo com o iminente perigo de ser devorado antes de alcançar a primeira
clareira.
Do homem-caixa,
do trabalhador-relógio-de-ponto, do operário-padrão-obediente, do
macho-sim-senhor, da mulher-livro-de-tombo, da fêmea-inhô-sim, do Homo
domesticus não se pode esperar muito. Flutuarão entre o berço e a cova sem
deixar uma marca, uma nódoa, um vestígio na superfície do tempo. De dentro do
seu aquário, que imaginam corresponder a toda amplitude do universo, comerão satisfeitos a sua ração e,
enquanto aguardam a inexorável mudança de águas, pôr-se-ão a criticar os
outros peixinhos que resolveram pular por sobre o vidro protetor, mesmo com a
ameaça de se verem sufocados sem a água em suas brânquias. Cristo, Martin
Luther King, Miguel Servet, Tiradentes, Ghandi, Giordano Bruno... Há sempre uma
cruz, fincada em algum Gólgota, esperando por quem quebra as fronteiras do
conforto, da acomodação e resolve comer os frutos da árvore do Conhecimento.
Nestes dias,
a mesma história milenar se repetiu. No Rio, uma vereadora e líder comunitária,
Marielle Franco, foi executada , junto do seu motorista , sumariamente, com armas de uso
exclusivo da Polícia. Seu crime foi
exatamente igual a de muitos seus sucessores nos extermínios periódicos. Vindo
da Favela da Maré, fez-se defensora dos mais pobres, das prostitutas, dos
indefesos, dos continuamente massacrados pelo estado que ao invés de subir os
morros com hospitais, escolas, livros, cultura e cidadania, presenteia-o com
metralhadoras, AR-15 e socos, balas e repressão. Isso tudo no Rio de Janeiro ,
em intervenção militar, num perigoso tubo
de ensaio para a reconsolidação definitiva da Ditadura armada no país. A revolta
popular com o assassínio que tem nuances similares ao de Edson Luiz, há meio
século, foi contrabalançada por uma chusma de ataques de uma extrema direita em
franca ascensão no Brasil, para eles (a história anda em bumerangue) Marielle teria colhido o que plantou. Os
comentários dos soldados romanos devem ter sido parecidos quando Cristo, Paulo
e Pedro estavam pregados na cruz. Mais que um assassínio brutal e
inqualificável, perpetrado, possivelmente a mando do estado e por funcionários
pagos pelos nossos impostos, vem anexo o recadinho, com a clara certeza de
impunidade ( não muito diferente daquele mandado pela Corte Portuguesa, no
esquartejamento de Tiradentes) : “ Quem não se enquadrar, vai provar do mesmo
cadafalso!”
Aos que se
põem a saborear com a execução pérfida de Marielle, vale lembrar o restinho da
história. A fuga do primeiro símio do topo da árvore levou-nos à conquista do
planeta. O Império Romano que sojigou Cristo e o Britânico que massacrou Gandhi
soçobraram e eles, ao contrário, esquiam impávidos e intocáveis na memória do povo. Os morros estão repletos de Marielles ( há uma
Canudos em cada Favela) e é sempre bom lembrar que a estrada da violência tem
sempre mão e contramão. Mais dia, menos dia, como diria Vandré, virá “A volta
do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar”. O ato de despetalar ferozmente
uma Rosa, felizmente, não tem o poder de impedir a eclosão da primavera: as flores
desabrocharão mais fortes, brilhantes e reluzentes.
Um comentário:
👏👏👏👏👏👏👏🙏🙏🙏🙏
Postar um comentário