sexta-feira, 9 de março de 2018

Luz, Sombra, Areia


                                               

                                               De repente -- sabe-se lá explicar os caprichos da natureza!-- o mar encrespa-se, surta e faz com que suas ondas se avolumem em feitio de tsunami, como que , em pesadelo, recordassem cataclísmicos tempos diluvianos. Talvez se revolte, vez por outra, contra as seguidas violações que se lhe vão perpetrando: as margens que pouco a pouco lhe são surripiadas, em nome da especulação imobiliária; a latrina em que o querem transformar, com a seguida poluição que chamam de progresso; a tranquilidade que lhe roubam com o riscar de navios, botes, lanchas e jet-skis. Vez por outra, num ataque de furor, suas águas ganham força , gritam:  Basta!  Elevam-se e invadem ruas, prédios, pontes, arrastando tudo que encontram pela frente. Foi o que aconteceu em Fortaleza, nesta última semana.

                                   Embriagados com tanta violência e poluição, os mares bravios de José de Alencar amanheceram de ressaca e de mal humor. Resolveram mostrar toda braveza: inundaram ruas próximas às praias paradisíacas da capital, banharam a ponte metálica com duchas capazes de arrancar qualquer ceroto. Barracas, que  roubam dos olhos de todos a beleza das marinas, praias privatizadas por espertalhões  viram-se, súbito, imersas  em sal, ungidas  num ritual  de limpeza e purificação.
                                   Nas longarinas da Ponte dos Ingleses, a Femme Bateau, de Sérvulo Esmeraldo, contrastava seus negros , iracêmicos , vaporosos e esfumaçantes  cabelos com o alvor azulado das nuvens e o verde musgo das ondas. Ali estava impávida, há muitos anos, náutica, singrando  mares tranquilos, sonhando com ímpetos de preamar. Sentia-se vezes aluada, deslizando, etérea sobre o Mar da Tranquilidade. Entediava-se, frequentemente, com passantes ,  olhos fixos em Miami,  corações transbordando de sonhos mercantis, incapazes de degustar a beleza que se derramava, aos borbotões, bem ali na sua frente. Enfastiada, a Femme Bateau montou na primeira carretinha, pegou carona no enorme jacaré e pôs-se  a  surfar nas ondas gigantes que banhavam a Ponte Metálica. Mergulhou com peixes-palhaço, saltitou com golfinhos, coçou as costas em recife de corais. Quem sabe encontrou-se com Sérvulo, em profundidades mais abissais, que lhe  mostrou um mundo menos geométrico, menos euclidiano, bem diferente deste daqui: lá  a Luz sobrepuja, em muito,  às sombras.
                                   Instada por amigos, mesmo a contragosto, a Femme deu meia volta no seu Bateau. Vai descansar alguns dias da sua viagem até deslizar, novamente, das longarinas da Ponte dos Ingleses. Depois de qualquer viagem, percebe-se nunca é o mesmo barco que retorna. Lançará os cabelos esvoaçantes, como fumaça, pelo céu de anil. Quem sabe, depois da tormenta, o continente descubra que o mundo não precisa ser tão cartesiano; que a vida não pode ser resumida numa planilha do Excel; que a beleza está a um palmo da nossa vista e que é possível sim singrar nas suas ondas, embebedando-se de luz, antes que o tsunami chegue com suas lições de sombra e de areia.


Crato, 09/03/2018        

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