De repente -- sabe-se lá explicar os
caprichos da natureza!-- o mar encrespa-se, surta e faz com que suas ondas se
avolumem em feitio de tsunami, como que , em pesadelo, recordassem
cataclísmicos tempos diluvianos. Talvez se revolte, vez por outra, contra as
seguidas violações que se lhe vão perpetrando: as margens que pouco a pouco lhe
são surripiadas, em nome da especulação imobiliária; a latrina em que o querem
transformar, com a seguida poluição que chamam de progresso; a tranquilidade
que lhe roubam com o riscar de navios, botes, lanchas e jet-skis. Vez por
outra, num ataque de furor, suas águas ganham força , gritam: Basta! Elevam-se e invadem ruas, prédios, pontes,
arrastando tudo que encontram pela frente. Foi o que aconteceu em Fortaleza,
nesta última semana.
Embriagados
com tanta violência e poluição, os mares bravios de José de Alencar amanheceram
de ressaca e de mal humor. Resolveram mostrar toda braveza: inundaram ruas
próximas às praias paradisíacas da capital, banharam a ponte metálica com duchas
capazes de arrancar qualquer ceroto. Barracas, que roubam dos olhos de todos a beleza das marinas,
praias privatizadas por espertalhões viram-se, súbito, imersas em sal, ungidas num ritual de limpeza e purificação.
Nas
longarinas da Ponte dos Ingleses, a Femme Bateau, de Sérvulo Esmeraldo, contrastava
seus negros , iracêmicos , vaporosos e esfumaçantes cabelos com o alvor azulado das nuvens e o
verde musgo das ondas. Ali estava impávida, há muitos anos, náutica,
singrando mares tranquilos, sonhando com
ímpetos de preamar. Sentia-se vezes aluada, deslizando, etérea sobre o Mar da
Tranquilidade. Entediava-se, frequentemente, com passantes , olhos fixos em Miami, corações transbordando de sonhos mercantis,
incapazes de degustar a beleza que se derramava, aos borbotões, bem ali na sua
frente. Enfastiada, a Femme Bateau montou na primeira carretinha, pegou carona
no enorme jacaré e pôs-se a surfar nas ondas gigantes que banhavam a
Ponte Metálica. Mergulhou com peixes-palhaço, saltitou com golfinhos, coçou as
costas em recife de corais. Quem sabe encontrou-se com Sérvulo, em
profundidades mais abissais, que lhe mostrou um mundo menos geométrico, menos
euclidiano, bem diferente deste daqui: lá
a Luz sobrepuja, em muito, às
sombras.
Instada por amigos,
mesmo a contragosto, a Femme deu meia volta no seu Bateau. Vai descansar alguns
dias da sua viagem até deslizar, novamente, das longarinas da Ponte dos
Ingleses. Depois de qualquer viagem, percebe-se nunca é o mesmo barco que
retorna. Lançará os cabelos esvoaçantes, como fumaça, pelo céu de anil. Quem
sabe, depois da tormenta, o continente descubra que o mundo não precisa ser tão
cartesiano; que a vida não pode ser resumida numa planilha do Excel; que a
beleza está a um palmo da nossa vista e que é possível sim singrar nas suas
ondas, embebedando-se de luz, antes que o tsunami chegue com suas lições de
sombra e de areia.
Crato,
09/03/2018
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