J. Flávio Vieira
No último dia 27 de setembro , a pedido do Conselho Federal de Medicina, o
juiz federal Renato Borelli expediu liminar impedindo os enfermeiros, em todo o
país , de prescrever remédios, solicitar exames e realizar consultas. A medida
levantou grande polêmica, principalmente por conta do impacto que causou no atendimento
do SUS no Brasil e da incontinenti desestruturação do Outubro Rosa. Só para se ter um exemplo, a Casa de Parto David
Capistrano, no Rio de Janeiro , tocada por enfermeiras obstétricas, especializada
em parto humanizado, simplesmente teve que sustar suas atividades. O Conselho
Federal de Medicina ( CFM) e o COFEN , Conselho Federal dos Enfermeiros,
imediatamente impeliram-se numa batalha judicial que, diga-se de passagem, já
se arrastava por muitos anos. De lado a lado, as artilharias passaram a
disparar seus projéteis. Um médico de Toledo, no Paraná, emitiu, em rede social,
um comentário extremamente grosseiro e deselegante: “Estudei 12 anos, em tempo
integral, para fazer isso e jamais vai ter uma enfermeira que fez um curso de
bosta de meio período, me dando ordem ! Vai limpar bosta de bunda suja, sim !”.
Enfermeiros queixaram-se da atitude extremamente corporativista do CFM e este
rebateu lembrando a expansão tentacular dos enfermeiros em atividades, antes,
embutidas do Ato Médico.
Há
quarenta anos na estrada, tenho acompanhado
todo o script desta tragicomédia. Permito-me, assim, mesmo sem ter o
distanciamento necessário, meter minha colher nesta sopa de letrinhas.
Primeiramente, acredito que as entidades médicas e de enfermagem não podem ser
criticadas por estarem apenas executando o papel que delas se espera. Destas corporações cobra-se , justamente, que lutem pelo espaço
dos seus associados no mercado de trabalho, a cada dia menos definido e
delimitado com a expansão das especialidades médicas e paramédicas. As entidades também devem impedir a conflagração
de brigas pessoais e rixas individuais, elevando os embates para as sociedades classistas.
Sempre
é bom lembrar como encetou esse acúmulo de atribuições, antes eminentemente
médicas, que os enfermeiros terminaram
por ter que assumir. Com a criação do Sistema Único de Saúde, após a
Constituição de 1988, retomou-se , por fim, o curso da Medicina Preventiva no
Brasil. Com todas as deformidades possíveis, com subfinanciamento, falhas no
atendimento, a mudança no modelo de assistência conseguiu, em quase trinta
anos, um impacto fenomenal nos nossos indicadores de Saúde como : Mortalidade
Infantil , Mortalidade Materna, Universalização, quase que abolição das doenças
de controle vacinal. O grande problema é que a classe médica que aos poucos se
foi diplomando, desde então, formou-se dentro de um modelo totalmente de viés curativo e hospitalocêntrico. Esta
realidade tornou-se ainda mais forte e preponderante com a expansão desenfreada
das novas Escolas Médicas , muitas privadas e caríssimas. Profissionais médicos
formam-se para a especialização e a superespecialização e para tratar quem pode
pagar pelo atendimento. Sempre utilizaram o SUS e os Programas de Saúde da
Família como mero bico: ou quando estão em fins de carreira ou aposentados ou
quando recém-formados pretendem fazer um pé-de-meia, enquanto aguardam a
Residência Médica. É frequente a grande volubilidade de médicos no SUS,
impedindo um trabalho mais contínuo e persistente. E a questão vai bem mais
além do salário que muitas vezes é bem acima do mercado, mas passa por questões
de estabilidade trabalhista e muito pela própria filosofia que norteia seus
sonhos e aspirações. Este vácuo fez com que os enfermeiros precisassem assumir
muitas das atribuições que antes não
lhes pertenciam, todas legalizadas por Resoluções do Ministério da Saúde e do
Conselho Nacional de Saúde: receitar dentro dos programas; acompanhar os
pré-natais; solicitar exames; prescrever hemoterapia; realizar partos. Além de
tudo, os enfermeiros viram-se impelidos
a assumir a maior parte das gerências de Unidades de Saúde e das Gestões
Municipais de Saúde. São os enfermeiros,
na realidade, os mais importantes protagonistas do atendimento público na assistência
primária, no Brasil. As entidades médicas permaneceram algo silentes, durante
todo esse processo. Revoltaram-se, mais por questões ideológicas, com a vinda
dos médicos estrangeiros no “Mais Médicos” e, agora, por fim, vendo a
proliferação de escolas e de formandos, acordaram para a necessidade de
garantir sua fatia nesse mercado.
Discordo
totalmente do colega paranaense, não só pela grosseria e baixeza de seus
comentários, mas principalmente pela obtusidade. A Medicina moderna faz-se, necessariamente,
de maneira multidisciplinar. Como cirurgião, posso até me arvorar de, em
determinadas situações, ser o protagonista principal do tratamento . Mas sei,
perfeitamente, que o sucesso de tudo depende de um trabalho de equipe que
envolve muitos e muitos personagens: enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas,
farmacêuticos, etc. Não adianta me orgulhar como primeiro violino na orquestra,
se o virtuosismo do Concerto pode vir de
água abaixo se atravessar, lá atrás, o
aparentemente insignificante reco-reco. Ademais, muitas e muitas vezes, o
médico tem um papel secundário no atendimento global , como nos tratamentos
paliativos, em pacientes terminais, quando o psicólogo , a enfermagem alternam-se nos cuidados mais importantes. Por
outro lado, o doutor paranaense não estudou só doze anos , como ele enfatiza na
sua desastrosa citação: saúde exige formação continuada .
Percebo,
claramente, que há bem mais torresmo no meio dessa paçoca. Por que , depois de
tantos e tantos anos, exatamente agora, sai a liminar que limita as atividades
da enfermagem? O SUS, desde o seu nascedouro, luta contra um inimigo feroz que
é a Ideologia Neoliberal. Para todos efeitos, nesta perspectiva de Estado Mínimo,
num país eminentemente capitalista e hoje neofascista, o SUS encontra-se na
contramão da história. A liminar permanecendo válida e confirmando-se, em
instâncias superiores, determinará, a médio prazo, o sepultamento de SUS, que já
vive combalido e anêmico por financiamento e administração inadequados. Sem
enfermagem, no modelo atual, não existe Sistema Único de Saúde. O sonho de que
profissionais médicos venham a assumir as atividades que lhes competem, numa Medicina
Preventiva, com foco na Atenção Básica e distribuição equânime em todas as
bibocas do país , é filosoficamente
ilusória. Nem salários à semelhança do judiciário, nem segurança trabalhística,
os arrancarão das maiores cidades, nem os farão generalistas. Talvez uma
carreira pública específica, bem remunerada, com dedicação exclusiva e possibilidade
de ascensão profissional , do interior para beira-mar, influenciasse de alguma
maneira a procura pela Saúde Pública. Seria, no entanto, um projeto de custo
elevado e de efeito a longo prazo, num país em que o pobre é visto como um
preguiçoso, um fracassado, um mero estorvo. Restarão, no cardápio, aos mais desprivilegiados socialmente: o Trabalho Escravo, a Aposentadoria
post-mortem, as delícias da Ração do Dória e, para completar o kit, podem se
livrar disto tudo, morrendo precocemente , à míngua, acometidos de doenças
gravíssimas típicas do Século que voltamos a viver: o Dezenove.
Crato, 20 de Outubro de 2017
Um comentário:
Salve,salve,Zé!Texto muito lúcido e preciso,meu amigo!A verdade é que a medicina já há muito virou fetiche social e a saúde uma mercadoria. Nada surpreendente que nessa situação de destruição do país, o conselho de medicina, que já havia miito bem demonstrado seu reacionarismo e hipocrisia, no caso do Mais Médicos, se dedique a engrossar as fileiras daqueles que querem destruir todos os direitos sociais, inclusive, a saúde pública. Vivenciamos um desastre, infelizmente!
Muitíssimo grato pela clareza e pelo texto afiado!
Grande abraço!
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