J. Flávio Vieira
Se há um troço difícil de calçar na
vida de um homem é a tal da aposentadoria. São poucas as vezes em que o novo
pisante não se apresenta grande ou
pequeno demais no pé do antigo trabalhador : geralmente começa a fazer calo, a
criar bolhas, levando muitas vezes à total inadequabilidade. As mulheres , por
outro lado, mais facilmente incorporam essa nova fase da vida. Mais afeitas ,
historicamente, às labutas da casa, voltam a se interessar pelos afazeres do
dia a dia, investem sua atenção nos netos e, mais sociáveis do que os
marmanjos, participam de atividades lúdicas próprias à terceira idade e, com
tempo disponível, mergulham em excursões , viagens, com amigas da mesma
geração. Mais espiritualizadas, na sua maioria, voltam-se para atividades
religiosas e caritativas. Já os homens, coitados, não têm nenhuma serventia em
casa. Quando se metem a ajudar nas atividades do lar, quase sempre é uma
tragédia. Brigam com os funcionários, com os filhos e com a patroa. São ,
rapidamente, enxotados de casa, antes que as secretárias peçam demissão e a
mulher o divórcio. Buscam então guarida nas únicas entidades que acolhem outros
aposentados e os suportam : os bares e
as rodinhas de praça.
Aqui em
Crato, as rodinhas se organizam , naturalmente, por castas sociais. Nada de
preconceito, apenas os assuntos de natureza comum apresentam-se bem diferentes.
Os mais abastados, se reúnem na calçada da Farmácia Gentil que terminou sendo
apelidada de Senado , tanto por conta
dos respeitáveis frequentadores, como, talvez, por conta de a própria rua
carregar o nome de um Senador : Pompeu. A classe média, em geral, se congrega na
Praça Siqueira Campos, que poderia até
ser apelidada de Câmara dos Deputados. Já os velhinhos mais
simples montam rodinha na Praça da Sé, que pode ser considerada nossa outra Câmara de Vereadores. Ali corre sempre uma pauta do dia, com
assuntos que se estendem desde a questões políticas municipais, estaduais e
nacionais; aos embates desportivos; até
às fofocas, ao disse-que-disse, ao quem-com-quem. Invariavelmente, com
olhos untados de um passado longínquo, todos se escandalizam com os rumos que
vão tomando os costumes modernos e a conclusão final é única :
--- No nosso tempo ? Ah! no nosso tempo, sim !
Naquele tempo tinha vergonha, tinha regra ! Não era essa esculhambação, não ! Era muito melhor!
Esta semana ,
nossa Câmara de Vereadores , na praça da Sé, discutia a aprovação da Terceirização
Irrestrita pelo Congresso Nacional. O mesmo assunto se colocado em pauta, no
Senado, certamente, teria mais defensores, uma vez que engloba mais figuras do
patronato cratense. Ali, no entanto, com a nossa Câmara constituída mais de
barnabés aposentados, a grita era geral. Rasgaram a CLT ! -- rosnavam alguns ; Revogaram a Lei Áurea ! --- completavam, indignados,
outros. Foi quando pediu a palavra o
velho Filúvio Candéia. Comedido, voz pausada, Filúvio, já beirando os noventa,
fora Caixa no antigo Banco Cariri. Ele, então, soltou uma apreciação que havia
escapado à maior parte dos vereadores ali da Praça da Sé.
Segundo
Filúvio, a votação da última semana, firmando a Terceirização Irrestrita do
Trabalho, tinha sido apenas a culminância de um processo que já se vinha
arrastando há muitos e muitos anos.
--- Os pais ,
hoje, geram os filhos e os entregam às babás, à TV, às academias e aos
professores para os criarem. Simplesmente porque mergulhados no mercado de
trabalho para sobreviver, não têm mais tempo para nada. Terceirizaram a criação
dos meninos ! Se vocês repararem
direitinho quase mais ninguém faz as refeições em casa, principalmente nas
capitais. Terceirizamos a cozinha há muito tempo ! Os supermercados substituíram as feiras
livres; a Internet tomou de conta do balcão das lojas . Tudo terceirizado ! A
juventude fugiu das igrejas e montou seu templo nos Shopping Center, é só vocês
observarem bem! Terceirização da religiosidade ! Os matutos trocaram os
jumentos e os burros pelas motos! Terceirizaram o transporte ! E na política , nem é bom comentar ! Esse
presidente que tá aí? Ganhou eleição ? Teve voto? Foi também terceirizado, meu
povo! E nós, também, pobres eleitores do país, colocamos no Congresso uma laia
de ladrões e corruptos que envergonha até mesmo os traficantes do morros do Rio
de Janeiro ! O que fizemos ? Terceirizamos nossa dignidade e nossa cidadania! E
não ficou só nisso não, meus amigos, completou Filúvio para uma plateia atenta
e sem resposta. Até no amor, meus amigos, até no amor ! Semana passada, Beroaldo, um amigo meu que
mora na Bréa, aqui no Crato, ao voltar do trabalho, deu com a esposa pelada
deitada na cama do casal, com o vizinho. Exasperado, furioso, quis saber o que
aquilo significava.
---- O que
isso significa, Marilu ? É ponta, é galha, é? Desgraçada !
Marilu,
com olhos lânguidos , o fez compreender que viviam em novos tempos bem
temerosos:
--- Né nada
não, Beró ! Fica peixe ! Terceirizei !
Crato,
31/03/2017
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