sábado, 4 de fevereiro de 2017

Sérvulo : Luz e Sombra


J. Flávio Vieira


                                                             Só existe uma coisa permanente neste mundo : a Impermanência. Estamos todos embarcados no mesmo trem do tempo infinito, em vagões diferentes e, pouco a pouco, vão desembarcando passageiros. Nunca se sabe qual será a nossa estação final. O certo é que ela chegará sem aviso prévio, sem anúncio dado pelo maquinista. Cada um terá o direito de observar uma paisagem temporal por sua janela, conversar com os passageiros do lado, cumprimentar o companheiro de viagem logo à frente, mas cada um de nós, apesar de seguirmos na mesma direção, perlustramos díspares embarcadouros e nos dirigimos a portos diferentes. Somos todos prisioneiros do espaço e do tempo. Fugindo de explicações esotéricas, só existe uma maneira uma forma de se abrir um portal entre tempos e gerações :  A Arte. Com ela é possível fazer com que se quebrem barreiras geográficas, temporais, espaciais e, mesmo sem a presença física do passageiro,  viandantes futuros poderão dialogar e serem tocados  por escrituras rupestres que incontáveis grafiteiros no passado foram debuxando pelas paredes do trem. A Arte tem essa capacidade mítica de burlar este fatalismo intrínseco ao nosso cortejo candente pelo planeta.
 
                                      Esta semana desceu do comboio um desses nossos queridos companheiros de travessia. Sérvulo Esmeraldo era cratense de carteirinha. Antes de se tornar artista plástico de renome internacional, transitou por muitas linguagens : Gravura, Ilustração, Pintura e a Escultura. Degustou, também, o sabor de muitas escolas como o Figurativismo, a Cinética, a Abstração, o Construtivismo. Permanece, mais claramente, na nossa memória afetiva, as esculturas geométricas de linhas, sombras e luz que foi espalhando mundo afora. Ligado umbilicalmente ao Cariri, estas formas devem ter brotado, naturalmente, das tortuosas e íngremes ruas do Crato, do relevo da nossa Chapada. E foi aqui, que ele, no ano passado, quase como um testamento, resolveu fazer sua última Exposição. À medida que o desembarque se aproximava , Sérvulo  retornava mais e mais , sentimentalmente, às suas raízes. Tinha a certeza, absoluta, que a última parada do seu trem seria na Praça dos Pombos.
                                      Sérvulo mantém aquele desígnio profético de que ninguém é profeta na sua terra. A cidade não lhe retribuiu a paixão desenfreada . Fica na nossa paisagem natural apenas uma escultura, no Alto do Seminário, doada por ele mesmo no seu retorno derradeiro. Permanece como um legado artístico que observa do poleiro a degradação arquitetônica da Vila de Frei Carlos. Edifícios em caixão , significativos ao funeral que se vai perpetrando. Monumentos públicos estéreis. Ruas frias e sem história,  demonstrando a incompetência fenomenal que sempre tivemos de fazer conviver o moderno com o tradicional, de fazer dialogar o passado glorioso com o presente desbotado.  
                                      Sérvulo parte e deixa sua arte estampada nas paredes do nosso trem. Ela continuará a encher os olhos dos futuros passageiros que, agora, terão outros cenários a desfrutar,  além dos que passam freneticamente pelas porta e janelas  do trem. Se se observar direitinho, ele continua sentado em uma das poltronas, discretamente, conversando com os que passam, apressados,  tangidos pela vida. Sérvulo , como um monge tibetano, ensina,  dia a dia ,  que , na vida e na arte, tudo se resume ao equilíbrio entre Sombra e Luz. O pássaro adejou as asas e partiu, mas fica entre nós o seu canto !


Crato, 03/02/17

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