sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Tru(m)picando em Matozinho

J. Flávio Vieira

                                         

                  Eleito pela terceira vez para prefeito de Matozinho, Donaldo Cangati , conhecido mais como Dondon do Trupicão, apresentou , durante a campanha, uma plataforma política  enviesada , empenada, mais troncha que olho de vesgo em jogo de tênis. O sobrenome mais popular de Dondon surgiu de um acidente esdrúxulo. Dondon, numa bebedeira, teria dado um trupicão num fio de pedra, fincado o pé-do-ouvido no chão e ficado entre a vida e a morte por mais de cinco dias, até recobrar o sentido.
                                  Matozinho  atravessava, naquele justo ano eleitoral, cinco anos de seca braba, estava menos úmida que língua de papagaio desidratado. Os matozenses subsistiam tirando uma água salobra , grossa e barrenta  das cacimbas naturais do Rio Paranaporã e , para comer, dependiam dos poucos legumes que porventura tivessem acumulado no paiol. Entre si faziam escambo daqui e dali , trocando andu por fava, feijão por milho, farinha por rapadura. A partir do terceiro ano de estiagem impiedosa, porém, as coisas começaram a ficar insustentáveis. Para piorar a calamidade, levas de flagelados vindas de cidades próximas como Bertioga e Serrinha do Nicodemos passaram a se deslocar para Matozinho, se  espremendo nas bordas da Serra da Jurumenha, tangidos pela sede e pela fome. Faziam-se de pedintes, mendigos: farrapos humanos ambulantes tentando de alguma maneira escapar da morte que lhes acervava, dia após dia, como carcará esperando dar o bote.  Eram nadas pedindo socorro a coisa nenhuma !
                                      Em meio ao desespero nos acampamentos, pequenos furtos tornaram-se frequentes. O papagaio  de Giba, dono do bar, foi roubado numa noite e, depois, suas penas encontradas nos arredores da vila, próximo a uma pequena fogueira, como prova de que tinha sido degustado às pressas. Chinelas curulepes , afanadas, devidamente flambadas, descobriu-se serem degustadas em churrascos. Siriemas, calangros, lagartixas fugiram das imediações como vampiro do alho. O óleo do Santíssimo, na semana santa, foi surrupiado para fritar préas. Mucunãs  e palmas estavam em falta na redondeza, tamanha a procura no  mercado negro.
                                     Foi nesse clima pavoroso que a plataforma de Trupicão caiu como uma luva. Prometeu expulsar de Matozinho todo indivíduo estranho à cidade e desestruturar os barracões da periferia. Firmou ainda a promessa de aumentar o contingente de soldados e capangas para esse fim. Estabeleceu uma espécie de pena de morte para quem roubasse víveres e prontificou-se a impedir a coleta de água nas cacimbas e poços do Paranaporã. O seu mais ousado projeto, no entanto, versava sobre a construção de um muro de pedras ao redor de toda Matozinho, isolando-a, hermeticamente, de outras vilas próximas que nada traziam para os matozenses além  de roubar as riquezas naturais da vila.
                                   Diante de tanto desespero, o discurso de Trupicão atingiu em cheio a mosca no alvo. Memória curta e seletiva , o povo nem sequer lembrou do desastre fenomenal que foram as duas administrações anteriores de Dondon. Um solapamento total do patrimônio público digno de um Átila beradeiro.  O lema da campanha: “Matozinho para os matozenses !” bateu fundo em todos e, sem tropeço dessa vez, Trupicão terminou eleito com mais de 80% dos votos (in)úteis.  
                                   Dondon tomou posse no início do ano e, apesar de ser reconhecido, como um péssimo pagador de promessas ( dizia-se até que só fazia as suas com São Sebastião porque o santo era amarrado e não podia correr atrás dele, depois, para cobrar) , o prefeito entrou dizendo, dessa vez a que viera. Cercou-se de jagunços e começou a perseguir, impiedosamente, os forasteiros. Sob mira de soca-soca os foi expulsando, um a um , das proximidades. Dizem que matou várias e várias famílias. Sapecou fogo em crianças que procuravam, de alguma maneira, alguma coisa para escapar da fome e da sede. Incendiou barracões.  Os jagunços vigiavam os poços com ordem de só deixar tirar água os habitantes da vila que nem precisavam se identificar pois, devido às proporções da megalópole matozense,  todos se conheciam perfeitamente. Houve alguns confrontos mais sérios,  com baixas de lado a lado, mas aos poucos, os migrantes começaram a , novamente, buscar uma outra terra nunca prometida e jamais doada.
                                    O muro de Matozinho  , também, rapidamente, começou a ser erguido, em volta da vila, usando ingredientes que não faltavam no lugar : Pedra e Barro. Dondon valeu-se de ajuda do governador, na época a ele aliado politicamente.  Conseguiram, com adjuntos, erguer tudo em menos de três meses, trabalhando dia e noite.  Parecia a Muralha da China. Possuía a grande muralha de Matozinho  mais de dez metros de altura por uns cinco metros de largura, arrodeava toda a vila , num percurso de mais de cinco quilômetros. Um imenso portão de braúna fechava a entrada principal ,  onde guardas armados de facão e lazarinas controlavam as entradas e saídas. Era uma fortaleza medieval.
                                   Os matozenses estavam felizes e realizados. O boca-a-boca, o jornal da vila, tecia seguidos elogios à administração do considerado Juscelino Kubitschek da região. Fechada Matozinho, em meados de março, a última leva de retirantes mais resistentes , nas imediações da Serra da Jurumenha, isolados agora totalmente da vila, resolveu bater em retirada. Subiram a montanha lentamente, com as poucas forças que lhes restavam. Iam levando o pouco que sobrou em matulões acomodados em lombos de três jegues magros  e cadavéricos.
                                  Tardezinha, o velho Laurentino, líder do bando,  chamado por todos de Ló, resolveu acampar em cima da Serra. Fizeram um fogo, pensando em assar dois mocós que tinham matado à baladeira, na escalada. Foi aí que se deu a calamidade. De repente, caiu um pé d´água imenso , desses que não se via a muito e muito tempo. Parecia que São Pedro resolvera tirar o atraso pluviométrico de anos, num só dia. Em menos de duas horas o rio Paranaporã encheu e extravasou . Matozinho , despreparada, agora cercada de muralhas viu , para seu desespero , a água subir rapidamente e inundar toda a vila agora tornada represa. As casas ficaram cobertas, matozenses incontáveis morreram afogados, inclusive Dondon, pego no contrapé do trupicão, na prefeitura, quando juntava o dinheiro do cofre para escapulir.
                                     Ló observou toda a tragédia do alto da serra. Tomou-lhe aquele sentimento misto de pena e satisfação  pelo castigo dos céus. Pediu, num certo momento, que todos dessem as costas e continuassem o caminho. A mulher de Ló, no entanto, impressionada, virou-se como se não pretendesse perder a cena. O marido então , cheio de maus pressentimentos, a alertou. Como em Sodoma, temeu que ela virasse uma estátua de sal. Ela , porém, o tranquilizou:
                                    ---- Virar estátua de sal, tu é doido Ló ? Vocês iam era me  pegar  para temperar os mocós e comer depois ! Oxe !  Nannn ... !


Crato, 27/01/ 2017

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