J. Flávio Vieira
Matozinho atravessava, naquele justo ano eleitoral,
cinco anos de seca braba, estava menos úmida que língua de papagaio
desidratado. Os matozenses subsistiam tirando uma água salobra , grossa e
barrenta das cacimbas naturais do Rio
Paranaporã e , para comer, dependiam dos poucos legumes que porventura tivessem
acumulado no paiol. Entre si faziam escambo daqui e dali , trocando andu por
fava, feijão por milho, farinha por rapadura. A partir do terceiro ano de
estiagem impiedosa, porém, as coisas começaram a ficar insustentáveis. Para
piorar a calamidade, levas de flagelados vindas de cidades próximas como
Bertioga e Serrinha do Nicodemos passaram a se deslocar para Matozinho, se espremendo nas bordas da Serra da Jurumenha,
tangidos pela sede e pela fome. Faziam-se de pedintes, mendigos: farrapos
humanos ambulantes tentando de alguma maneira escapar da morte que lhes
acervava, dia após dia, como carcará esperando dar o bote. Eram nadas pedindo socorro a coisa nenhuma !
Em meio ao desespero nos acampamentos, pequenos
furtos tornaram-se frequentes. O papagaio de Giba, dono do bar, foi roubado numa noite
e, depois, suas penas encontradas nos arredores da vila, próximo a uma pequena
fogueira, como prova de que tinha sido degustado às pressas. Chinelas curulepes
, afanadas, devidamente flambadas, descobriu-se serem degustadas em churrascos.
Siriemas, calangros, lagartixas fugiram das imediações como vampiro do alho. O
óleo do Santíssimo, na semana santa, foi surrupiado para fritar préas. Mucunãs e palmas estavam em falta na redondeza,
tamanha a procura no mercado negro.
Foi nesse clima pavoroso que a
plataforma de Trupicão caiu como uma luva. Prometeu expulsar de Matozinho todo
indivíduo estranho à cidade e desestruturar os barracões da periferia. Firmou
ainda a promessa de aumentar o contingente de soldados e capangas para esse
fim. Estabeleceu uma espécie de pena de morte para quem roubasse víveres e prontificou-se
a impedir a coleta de água nas cacimbas e poços do Paranaporã. O seu mais
ousado projeto, no entanto, versava sobre a construção de um muro de pedras ao
redor de toda Matozinho, isolando-a, hermeticamente, de outras vilas próximas
que nada traziam para os matozenses além
de roubar as riquezas naturais da vila.
Diante de
tanto desespero, o discurso de Trupicão atingiu em cheio a mosca no alvo.
Memória curta e seletiva , o povo nem sequer lembrou do desastre fenomenal que
foram as duas administrações anteriores de Dondon. Um solapamento total do patrimônio
público digno de um Átila beradeiro. O
lema da campanha: “Matozinho para os matozenses !” bateu fundo em todos e, sem
tropeço dessa vez, Trupicão terminou eleito com mais de 80% dos votos
(in)úteis.
Dondon tomou
posse no início do ano e, apesar de ser reconhecido, como um péssimo pagador de
promessas ( dizia-se até que só fazia as suas com São Sebastião porque o santo
era amarrado e não podia correr atrás dele, depois, para cobrar) , o prefeito
entrou dizendo, dessa vez a que viera. Cercou-se de jagunços e começou a
perseguir, impiedosamente, os forasteiros. Sob mira de soca-soca os foi
expulsando, um a um , das proximidades. Dizem que matou várias e várias famílias.
Sapecou fogo em crianças que procuravam, de alguma maneira, alguma coisa para
escapar da fome e da sede. Incendiou barracões. Os jagunços vigiavam os poços com ordem de só
deixar tirar água os habitantes da vila que nem precisavam se identificar pois,
devido às proporções da megalópole matozense, todos se conheciam perfeitamente. Houve alguns
confrontos mais sérios, com baixas de
lado a lado, mas aos poucos, os migrantes começaram a , novamente, buscar uma
outra terra nunca prometida e jamais doada.
O muro de
Matozinho , também, rapidamente, começou
a ser erguido, em volta da vila, usando ingredientes que não faltavam no lugar
: Pedra e Barro. Dondon valeu-se de ajuda do governador, na época a ele aliado politicamente.
Conseguiram, com adjuntos, erguer tudo
em menos de três meses, trabalhando dia e noite. Parecia a Muralha da China. Possuía a grande
muralha de Matozinho mais de dez metros
de altura por uns cinco metros de largura, arrodeava toda a vila , num percurso
de mais de cinco quilômetros. Um imenso portão de braúna fechava a entrada principal
, onde guardas armados de facão e
lazarinas controlavam as entradas e saídas. Era uma fortaleza medieval.
Os matozenses
estavam felizes e realizados. O boca-a-boca, o jornal da vila, tecia seguidos
elogios à administração do considerado Juscelino Kubitschek da região. Fechada
Matozinho, em meados de março, a última leva de retirantes mais resistentes ,
nas imediações da Serra da Jurumenha, isolados agora totalmente da vila,
resolveu bater em retirada. Subiram a montanha lentamente, com as poucas forças
que lhes restavam. Iam levando o pouco que sobrou em matulões acomodados em
lombos de três jegues magros e
cadavéricos.
Tardezinha, o velho Laurentino, líder do
bando, chamado por todos de Ló, resolveu
acampar em cima da Serra. Fizeram um fogo, pensando em assar dois mocós que
tinham matado à baladeira, na escalada. Foi aí que se deu a calamidade. De
repente, caiu um pé d´água imenso , desses que não se via a muito e muito
tempo. Parecia que São Pedro resolvera tirar o atraso pluviométrico de anos,
num só dia. Em menos de duas horas o rio Paranaporã encheu e extravasou .
Matozinho , despreparada, agora cercada de muralhas viu , para seu desespero , a
água subir rapidamente e inundar toda a vila agora tornada represa. As casas
ficaram cobertas, matozenses incontáveis morreram afogados, inclusive Dondon,
pego no contrapé do trupicão, na prefeitura, quando juntava o dinheiro do cofre
para escapulir.
Ló
observou toda a tragédia do alto da serra. Tomou-lhe aquele sentimento misto de
pena e satisfação pelo castigo dos céus.
Pediu, num certo momento, que todos dessem as costas e continuassem o caminho.
A mulher de Ló, no entanto, impressionada, virou-se como se não pretendesse
perder a cena. O marido então , cheio de maus pressentimentos, a alertou. Como
em Sodoma, temeu que ela virasse uma estátua de sal. Ela , porém, o
tranquilizou:
---- Virar estátua de sal, tu é doido Ló ?
Vocês iam era me pegar para temperar os mocós e comer depois ! Oxe ! Nannn ... !
Crato, 27/01/ 2017
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