J. Flávio Vieira
N os últimos dias, por incrível que
possa parecer, começaram a pulular, Brasil afora, professores de português. A
notícia pode até parecer salutar, à primeira vista: finalmente estaríamos
olhando para o umbigo e redescobrindo que
“a última flor do Lácio, inculta e bela” faz parte intrínseca da nossa
individualidade. Cultivá-la, podá-la cuidadosamente, tratá-la com desvelo , no
fundo, seria acariciar a nós mesmos, afinal a língua é possivelmente o que
existe de mais visível e profundo na nossa identidade cultural. A notícia seria
alvissareira se não tivesse , por pano de fundo, o que existe de mais abjeto no
coração humano : o preconceito.
Em São Paulo,
o médico Guilherme Capel Pascua, de plantão, atenderia um paciente humilde que,
confidencialmente , em linguagem simples, externou os sintomas na sua língua
própria. O doutor, com sorriso sardônico, zombaria dele e , nas Redes Sociais (
o Oráculo de Delfos da atualidade) debocharia do coitado : “Não existe Paleumonia
e nem Raôxis !” , diria ele, para seus amigos , caçadores de Pokemóns. A foto
de Dr. Guilherme, um médico visivelmente recém-formado, ganharia o noticiário e
ele terminaria demitido, junto com vários funcionários do mesmo hospital, que
corroboraram a gozação, inclusive citando outras, de outros clientes,
igualmente pouco alfabetizados, que teriam cometido ( na avaliação desfocada
deles) sérios crimes gramaticais.
Não
pretendo aqui crucificar um colega, ainda imberbe, na sua atitude, ao meu ver,
totalmente estapafúrdia. O consultório é um confessionário e somos todos, desde
Hipócrates, sujeitos ao Segredo Médico. Nem sob tortura, sob ação judicial,
podemos revelar o que nos foi confidenciado. O médico, diante do seu paciente,
não é um técnico de gravata diante de um televisor; devemos ser,
necessariamente, uma alma diante de outra alma. Precisamos que ser , sim,
intérpretes das diversas línguas portuguesas existentes no Brasil, isso faz
parte do nosso mister e da nossa formação . E mais ( pasmem Dr. Capel e seus
asseclas! ) , não existe erro linguístico nas informações do cliente humilde .
A língua é dinâmica e viva , não pode se ater a simples regras formais e
fossilizadas da escrita culta. Tenho absoluta certeza que o Dr. Guilherme não
fica corrigindo seus amigos do Facebook quando estes utilizam o típico
linguajar das Redes Sociais, com palavras truncadas, sem o til e o cedilha e
plena de neologismos. Além de tudo, colocaram o paciente humilde precisando se
expressar com termos técnicos , distantes dele. Dr. Capel passaria numa prova
de economês , filosofês ou cibernetiquês ?
O
mais preocupante para mim, no entanto, é que a visão do Dr. Guilherme não é
apenas dele, mas de toda uma geração de novos profissionais , sempre se sentindo
superiores aos seus pacientes e certos que foi por simples mérito próprio que
chegaram ao conhecimento e à formação acadêmica. Os que não conseguiram estudar
e aprender a língua formal, não o
fizeram porque, na sua visão, são preguiçosos ou burros. O enteado do paciente , triste, informaria à
imprensa que seu padrasto não teve condições de continuar os estudos porque ele
, o enteado, teve tuberculose aos dois
anos e, na época, ou o mecânico estudava ou pagava seus remédios. A visão de
Dr. Guilherme e de seus comparsas, certamente, era a de que ele deveria ter
deixado o enteado morrer e, meritocraticamente, ir aprender gramática.
Na última quarta-feira,
a atual presidenta do STF , Carmen Lúcia, ao ser saudada como tal , recusou o
título informando que queria ser tratada como presidente, uma vez que era
“amante da língua portuguesa”. Não soube
se o gramático paulista Dr. Guilherme
Capel criticou a ministra. Ao paciente humilde do médico não se pode cobrar
conhecimento da língua erudita, mas era de se esperar que a uma pessoa que
ocupa um dos mais altos cargos da justiça do país tivesse conhecimento de
causa. As duas formas são perfeitamente corretas segundo Bechara e outros
mestres da língua portuguesa. Até Machado de Assis utilizou o “presidenta” nas
“Memórias Póstumas”. Como sempre, havia mais de uma simples correção gramatical
na fala da ministra. Existia uma deselegância desnecessária , era como se
dissesse : “Presidenta, não ! Não me compare com aquela gentalha!”
A
escolha do “Presidenta” pela atual presidenta eleita do Brasil, tem um
fortíssima razão linguística. Ela pretende realçar a força feminina do seu
cargo. É mesmo bom que a ministra mantenha o seu “presidente” antes do seu
nome. A Suprema Corte do país tem dado mostras claras de que nossos problemas
vão bem além das interpretações de regras gramaticais. Mesmo que os gramáticos
vesgos Lúcia e Capel estivessem certos linguisticamente, Patativa do Assaré já tinha matado a charada: “é
melhor escrever errado a coisa certa do
que escrever certo a coisa errada”.
Crato, 12/08/16
Um comentário:
Maravilha!
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