quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Caçando Pokemóns

                                  
J. Flávio Vieira
                         N os últimos dias, por incrível que possa parecer, começaram a pulular, Brasil afora, professores de português. A notícia pode até parecer salutar, à primeira vista: finalmente estaríamos olhando para o umbigo e redescobrindo que   “a última flor do Lácio, inculta e bela” faz parte intrínseca da nossa individualidade. Cultivá-la, podá-la cuidadosamente, tratá-la com desvelo , no fundo, seria acariciar a nós mesmos, afinal a língua é possivelmente o que existe de mais visível e profundo na nossa identidade cultural. A notícia seria alvissareira se não tivesse , por pano de fundo, o que existe de mais abjeto no coração humano : o preconceito.
 
                                   Em São Paulo, o médico Guilherme Capel Pascua, de plantão, atenderia um paciente humilde que, confidencialmente , em linguagem simples, externou os sintomas na sua língua própria. O doutor, com sorriso sardônico, zombaria dele e , nas Redes Sociais ( o Oráculo de Delfos da atualidade) debocharia do coitado : “Não existe Paleumonia e nem Raôxis !” , diria ele, para seus amigos , caçadores de Pokemóns. A foto de Dr. Guilherme, um médico visivelmente recém-formado, ganharia o noticiário e ele terminaria demitido, junto com vários funcionários do mesmo hospital, que corroboraram a gozação, inclusive citando outras, de outros clientes, igualmente pouco alfabetizados, que teriam cometido ( na avaliação desfocada deles) sérios crimes gramaticais. 
                        Não pretendo aqui crucificar um colega, ainda imberbe, na sua atitude, ao meu ver, totalmente estapafúrdia. O consultório é um confessionário e somos todos, desde Hipócrates, sujeitos ao Segredo Médico. Nem sob tortura, sob ação judicial, podemos revelar o que nos foi confidenciado. O médico, diante do seu paciente, não é um técnico de gravata diante de um televisor; devemos ser, necessariamente, uma alma diante de outra alma. Precisamos que ser , sim, intérpretes das diversas línguas portuguesas existentes no Brasil, isso faz parte do nosso mister e da nossa formação . E mais ( pasmem Dr. Capel e seus asseclas! ) , não existe erro linguístico nas informações do cliente humilde . A língua é dinâmica e viva , não pode se ater a simples regras formais e fossilizadas da escrita culta. Tenho absoluta certeza que o Dr. Guilherme não fica corrigindo seus amigos do Facebook quando estes utilizam o típico linguajar das Redes Sociais, com palavras truncadas, sem o til e o cedilha e plena de neologismos. Além de tudo,  colocaram o paciente humilde precisando se expressar com termos técnicos , distantes dele. Dr. Capel passaria numa prova de economês , filosofês ou cibernetiquês ?  
                        O mais preocupante para mim, no entanto, é que a visão do Dr. Guilherme não é apenas dele, mas de toda uma geração de novos profissionais , sempre se sentindo superiores aos seus pacientes e certos que foi por simples mérito próprio que chegaram ao conhecimento e à formação acadêmica. Os que não conseguiram estudar e aprender a língua formal,  não o fizeram porque, na sua visão, são preguiçosos ou burros.  O enteado do paciente , triste, informaria à imprensa que seu padrasto não teve condições de continuar os estudos porque ele , o enteado,  teve tuberculose aos dois anos e, na época, ou o mecânico estudava ou pagava seus remédios. A visão de Dr. Guilherme e de seus comparsas, certamente, era a de que ele deveria ter deixado o enteado morrer e, meritocraticamente, ir aprender gramática.
                        Na última quarta-feira, a atual presidenta do STF , Carmen Lúcia, ao ser saudada como tal , recusou o título informando que queria ser tratada como presidente, uma vez que era “amante da língua portuguesa”.  Não soube se o gramático paulista  Dr. Guilherme Capel criticou a ministra. Ao paciente humilde do médico não se pode cobrar conhecimento da língua erudita, mas era de se esperar que a uma pessoa que ocupa um dos mais altos cargos da justiça do país tivesse conhecimento de causa. As duas formas são perfeitamente corretas segundo Bechara e outros mestres da língua portuguesa. Até Machado de Assis utilizou o “presidenta” nas “Memórias Póstumas”. Como sempre, havia mais de uma simples correção gramatical na fala da ministra. Existia uma deselegância desnecessária , era como se dissesse : “Presidenta, não ! Não me compare com aquela gentalha!”
                        A escolha do “Presidenta” pela atual presidenta eleita do Brasil, tem um fortíssima razão linguística. Ela pretende realçar a força feminina do seu cargo. É mesmo bom que a ministra mantenha o seu “presidente” antes do seu nome. A Suprema Corte do país tem dado mostras claras de que nossos problemas vão bem além das interpretações de regras gramaticais. Mesmo que os gramáticos vesgos Lúcia e Capel estivessem certos linguisticamente,  Patativa do Assaré já tinha matado a charada: “é melhor escrever errado  a coisa certa do que escrever certo a coisa errada”.


Crato, 12/08/16