A vida
política, em Matozinho, sempre foi monótona como as incelenças de Chica
Rasga-Mortalha. Duas famílias se alternavam no poder: os adeptos de Pedro Cangati e os descendentes
do velho Juvenal Chinchorro. Na vila,
todo mundo sabia exatamente quem participava do batalhão dos Cagaprati e dos
Cachorros, como, popularmente as facções ficaram conhecidas. Claro que,
periodicamente, havia deserções de lado a lado, dependendo da gangorra
eleitoral do momento. Mudar de um lado para outro, no entanto, impingia ao
desertor um ar de fraqueza e desconfiança. Louvava-se sempre aqueles que mesmo
“por baixo” por quatro anos, mantinham o
dedo no apito e aguentavam o tranco. Em cidade pequena, a balança do poder determinava, imediatamente,
quem ficaria no inferno ou paraíso: aos amigos as facilidades da lei, aos
inimigos os rigores dos códigos penal e civil. Essa pouca alternância das
forças políticas, se arrastando por mais de trinta anos, apesar da aparente
novidade dos candidatos, levava , em pouco, a se entender que só dois
prefeitos, na realidade governavam durante todo esse tempo: ou se ia para
sentina com os Cagaprati ou se esperava a mordida dos Cachorros.
Um dia , no entanto, para
desespero do poder local, um candidato novo resolveu entrar no páreo. Aderaldo
Jurema chegara há uns cinco anos em Matozinho. Nascera ali, mas, na seca braba de 1958, ainda meninote, escapou
para o Sul, num pau de arara. Quase morre de sede e da fome só escapou por
conta de iguarias como mucunã e palma chamuscada. Pagou todo o karma de
incontáveis encarnações, em São Paulo. Servente de pedreiro, camelô, pastorador
de carro, vigia de prédio, comerciário.
Desarnado, juntou uns poucos trocados e
estabeleceu-se com uma pequena vendinha, num bairro periférico, um amontoado de
pobres figuras que, depois, aumentaria de tamanho com a desigualdade e pobreza
e se tornaria Brasilândia. Ali , pouco a pouco, foi se apossando de terras
ainda meio devolutas, aumentou o número da famosa “ A Barateira do Norte” e
tornou-se remediado. Na balança de Brasilândia era um homem rico. Claro que a
riqueza é sempre relativa: em terra de esfomeado quem tem uma broa é rei.
Aderaldo casara com uma
nordestina, de pouco estudo, mas de uma
capacidade de trabalho imensa. Administrava a casa como uma empresária e ainda sobrava tempo para
acompanhar as lojinhas e cobrar os aluguéis dos imóveis. Um fato, no entanto, o
fez abandonar a vida próspera, arrumar os teréns e voltar à sua Matozinho. O
tráfico de drogas começou a tomar conta do seu bairro. Cobravam dele
cumplicidade, taxas de segurança e investimento na empresa que se instalava.
Aderaldo passou a se virar como era possível, espremido que ficou entre os
traficantes e a polícia, e não dava para
saber que lado era o pior. A gota d´água
a entornar o seu copo de amargura, no entanto, aconteceu quando um dos seus
filhos, Viriato, se viciou e terminou chacinado por dívidas para com a Boca de Fumo. De comum acordo com D. Marivalda,
com quem dividia a outra banda da macaúba, venderam o que tinham, bem abaixo do
preço de mercado, e voltaram para Matozinho.
Aderaldo chegou na sua terra
natal com uma aura de vencedor. Aura a que , na verdade, fazia jus. Se em
Brasilândia já era tido como estribado, em Matozinho, então, apareceu como um
Jeff Bezos. Reiniciou a vida com a “Barateira”, ramo que conhecia bem. Se a
loja não era tão próspera, como em São Paulo, seus gastos diminuíram
vertiginosamente. De bom coração, sobrevivente também da miséria nossa de cada
dia, ajudava muito a quem o procurava. Aderaldo, longe da seara política local,
que sabia caminho escorregadio e pantanoso, comunicativo e dado, tornou-se
muito popular na vila e redondezas.
Sinderval Bandeira, o
prefeito de Matozinho, aliado dos Cagaprati, estava já no terceiro mandato,
quando aconteceu uma falha inexplicável. Na vila, político roubar nem sequer se
considerava crime, o grande problema era ser pego no flagra. Pois bem, o
governador do estado, em período pré-eleitoral, veio a Matozinho em campanha,
junto com a primeira dama. Dormiram na
casa de Sinderval, um bangalô suntuoso,
localizado nas margens do Rio Paranaporã. Pois bem, sabe-se lá como, pela
manhã, D. Eufrazina Gadelha, a primeira dama do estado, deu por falta de um colar de pérolas e uma
bracelete de ouro que tinham sido presente do marido nas suas Bodas de Ouro. A
madame abriu o berreiro , como gato na capação. O certo é que foi convocada a
polícia do estado e, após investigação minuciosa, deram com as joias dentro do cofre de Sinderval. Não
havendo outro jeito, o prefeito devolveu o furto e espalhou a versão de que
tinha sido uma manobra dos seus inimigos políticos para prejudicar a
candidatura do seu candidato: Aurismar Santiago, contra o Cachorro Eulino
Catonho.
É nesse exato momento que ,
ante a mentira deslavada e o contrapé de Sinderval, a capenga oposição à
alternância eterna Chinchorro-Cangati, convenceu Aderaldo a lançar sua
candidatura, correndo por fora. Quando a coisa apertou, na reta final, os
eternos rivais das campanhas de Matozinho, se juntaram em prol da candidatura
de Aurismar. Espalharam , por todo canto, que haveria roubo e compra de votos
por parte de Aderaldo. Abertas as urnas,
no entanto, pela primeira vez na história dessa Matozinho, com uma diferença de
apenas 57 votos, Aderaldo foi eleito prefeito . A vila fez uma festa maior do que a de N. S. dos
Desafogados !
De alguma maneira os eternos
vencedores , em algum momento da campanha, temeram pelo pior. Tanto que
Sinderval reforçou a guarda municipal
que se resumia em três samangos que passavam o dia pegando moscas na delegacia.
Contratou mais quinze guardas sem muito treinamento em campos de conflito, mas
com uma qualidade que ele considerava imprescindível: obediência cega a sua ordens.
Os Cagaprati e Cachorros , como sempre, acreditavam no risco da prefeitura
ser entregue ao lado oposto, nunca, porém , chegaram a imaginar uma tragédia do
porte que tiveram pela frente: ganhar um forasteiro que, segundo eles, nenhum
traquejo tinha na administração de Matozinho.
O baque foi imediato de lado
a lado. Quatro anos sem poder meter a mão no dinheiro público, empregar os apaniguados, ter que tirar do
próprio bolso para pagar a feira, a gasolina, a energia elétrica, a água.
Aquilo era um despautério! Os inimigos figadais se reuniram , Sinderval, Aurismar e Eulino. Pesaram as perdas e
chegaram à conclusão que estavam mais lascados do que o beiço de Chico Goela de Lobo, o magarefe da
cidade. Tinham que fazer alguma coisa. Tentaram embargar a posse sob pretexto
de que Aderaldo comprara votos com verba fornecida por traficantes de
Brazilândia. Entraram na justiça, mas, sem provas suficientes, a teoria
conspiratória veio abaixo e o juiz Olímpio Matagão arquivou o processo. A
medida fez com que os funcionários da administração de Sinderval , os Cagaprati e Cachorros criassem um ranger
de pitbull contra o magistrado. Pensaram
em recorrer à capital, mas Sinderval lembrou que sofreria o embargo do
governador que, por pouco, não viu a mulher desjoiada em Matozinho. Em nova
reunião, agora incluindo o delegado e chefe da guarda municipal, Ildefonso
Lambe Botas, o delegado, ar impávido de
quem parte para o front, foi categórico. O tempo urgia ! A posse de Aderaldo
estava marcada para dali a quinze dias. Só tinha um jeito!
--- Temos que eliminar os
alvos ! Pelo bem de Matozinho ! Contra
os comunistas que querem açambarcar os cofres públicos ! Vamos dar uma rasteira
em Aderaldo, no vice Onegildo da
Caçuleta e no juiz corrupto Matagão ! Aí serão convocadas novas eleições , os
Cangatis e Chinchorros voltam à disputa. Que ganhe o melhor !
Depois, numa convocatória
mais reservada com apenas Ildefonso, Sinderval , Aurismar e Eulino, começaram a
traçar a estratégia salvadora da heroica terra de Matozinho. Podiam criar uma balbúrdia na cidade
encabeçada por adeptos políticos das duas facções. A guarda municipal, com seu
exército de vinte samangos, seria chamada para coibir o quebra-quebra. Possivelmente o juiz Matagão apareceria para
tentar desarmar a revolta e seria abatido com um tiro de soca-soca disparado
por um preposto de alguma janela escondida da rua. No meio do quebra –quebra
parte da turba prenderia Onegildo e o
afogaria no açude do Sabugo. A versão oficial diria que ele tentou fugir, pulou
no açude, no meio do arranca-rabo e terminou se afogando. Uns dias depois, por
fim, alguém entregaria uma lata de doce
de leite a Aderaldo que era viciado na iguaria. Só que já viria temperado com
tingui. O prefeito eleito bateria as botas e espalhariam a história de que
tinha morrido empanzinado. Resultado, terra devastada, limpa: novas eleições. E
o retorno das duas chapas de sempre à disputa de cartas marcadas.
O plano parecia perfeito e
fadado ao sucesso e à pouca desconfiança. O grande problema residia nos
executores: a Guarda Municipal ( Exército local) e lldefonso
( o chefe do GSI , o Mosad de Matozinho). A primeira fase da intentona andou perto dos
conformes. Num domingo se reuniram na estrada de Bertioga e vieram em passeata
em busca de Matozinho. Adeptos dos Cangati e Chinchorro, aparentemente sem
líderes mais destacados. Carregavam foices, enxadas e estrovengas invadiram a
praça da matriz e fizeram uma quebradeira danada na Câmara de Vereadores , na
Prefeitura e no Fórum. A Guarda Municipal ficou quietinha no seu canto, sem se
envolver no quebra-quebra. Deram a justificativa, depois, que não estavam armados
o suficiente para enfrentar a multidão. Como era de se esperar, o juiz Matagão
, quando da invasão do Fórum, tomou a
frente. De uma das janelas, o soldado Bil
Caldo de Andu , pronto pra emboscada,
mirou no peito de Matagão, mas , por duas vezes a soca-soca , de pouco
uso, bateu catolé. Ele, então, recarregou a arma, aumentando a dosagem da
pólvora. Na terceira tentativa houve um estampido, subiu um fogaréu danado e o
pistoleiro saiu todo preto do meio do fumaceiro, só com a coronha da espingarda
na mão. Até hoje o cano não foi recuperado e, passados dois anos, o ouvido de
Bil ainda pia como se carregasse um balaio de pinto. Caldo de Andu foi a única
vítima da tentativa de assassinar Matagão.
A turba de malfeitores
conseguiu entrar na casa de Onegildo e o levar para as margens do açude do
Sabugo. Esqueceram, porém, que naquela época do ano, estava seco e nem lama
tinha no porão. De há muito tinha batido piaba. Estava escuro quando chegaram
na beirada e ao jogaram Onegildo dentro, ouviram só um baque seco e a corrida
do homem carrasco adentro. Ele, depois, se tornou a principal testemunha que
redundou na prisão dos vândalos mais importantes.
Restava a terceira fase que
ficou a cargo pessoal do mais taludo dos espiões matozenses, o Poirot local :
Ildefonso Lambe-Botas. Esfriados os ânimos, após a derrocada de golpe de
estado, Aderaldo recebeu, em casa, uma compota de Doce de Leite, cujo portador
disse tinha sido um presente de Zabé do Quebra-Queixo, a maior doceira da
cidade.
Os dias se passaram e não se teve notícia do
passamento de Aderaldo e nem de qualquer notícia de mal-estar ou sobroço.
Lambe-Notas mandou seu serviço secreto averiguar. Aderaldo, segundo a empregada
da casa, comera o doce todo que até se lambuzara.
O delegado mandou, então, refazer o trajeto do doce desde a saída da casa de
Zabé até à mesa do prefeito eleito. O responsável pelo entinguizamento do doce
tinha sido Totonho Tiú, o Ouvidor Geral de Matozinho, que era surdo como uma
porta. Severo, o soldado que levara o doce até ele para o devido envenenamento,
informou que a ordem tinha sido clara e gritada em tom de locutor de vaquejada:
--- Totonho, taqui o doce.
Bote o tingui como bota palma pra gado!
Cuide, seu mouco! ! Pode atochar !
Segundo levantou o GSI de
Matozinho, o problema foi de interpretação. Totonho entre um an-an-an-an danado
entendeu diferente a ordem, com sua audição de tiú:
--- Totonho, taqui o doce !
Não venha com qui-qui-qui, seu veado ! Bote coco pra melhorar !
No fim de semana, Zabé, sem
entender bem o que estava acontecendo,
recebeu um envelope com cinquenta
reais e um bilhete do Aderaldo:
--- Zabé, dessa vez você se
superou, nunca vi um doce tão gostoso como esse que vc me mandou semana passada
! Deu água na boca !
Crato, 13 de Janeiro, 2025