sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Fascismo, não !

 

 

 

 


J. FLÁVIO VIEIRA

 

                               O filósofo espanhol  José Ortega Y Gasset dizia que a opinião contrária à nossa  faz parte integrante da nossa verdade e ajuda a se compreender melhor as nuances do mundo. Voltaire vaticinara, já no Século XVIII, que mesmo não concordando com nada do que alguém dissesse, ele tinha o dever de lutar até o fim pelo direito daquela pessoa emitir sua opinião. Ou seja, quem pensa diferente de mim, em verdade, não é meu inimigo: sua visão de mundo junta-se à minha para que eu compreenda melhor as diversas nuances do universo. Valho-me desses luminares das Ciências Humanas, neste momento em que a Brasil anda tão polarizado. O país , de repente, se pôs nos dois extremos da reta e esqueceu que a virtude, como diziam os latinos, está num ponto equidistante das extremidades. Tenta-se resolver tudo com o ódio, o rancor, a fúria, a violência , a agressão.

                   Neste período eleitoral, então, as paixões extremas, de lado a lado, se tornam mais visíveis, palpáveis e perigosas. Chega , inclusive, em homicídios como aconteceu aqui em Crato.  Tudo seria fácil de resolver se, relegados os interesses pessoais, estivéssemos todos lutando por um país melhor e mais justo, utilizando apenas  caminhos diferentes. Entendo que a tolerância quanto à opinião contrária à minha não é não só salutar , mas enriquecedora. Nada mais deletério para a vida do que a visão maniqueísta, a verdade única de manada, a unanimidade. Existem, no entanto, questões humanísticas  inegociáveis e intoleráveis. Aquelas que nem precisam ser levadas à discussão, mas combatidas ferozmente. A Tortura, o Fascismo, o Genocídio,  o Racismo, o Holocausto, a Ditadura, por exemplo.  Estas são algumas daquelas questões que se assemelham a um Câncer da sociedade, cujo tratamento não está no campo da retórica, mas da cirurgia de extirpação.

                   Estamos, no momento, prestes a realizar as eleições municipais. Num Brasil tão polarizado,   os debates têm substituído as palavras  pelas cadeiradas, denúncias rasteiras e ameaças de morte. E os atritos ficam bem mais frequentes porque a disputa é no nosso jardim, no nosso quintal.  Sei que , nesse momento, o cidadão comum não se volta para o coletivo. Ele é pragmático aqui, em São Paulo, do Oiapoque ao Chuí. A coletividade é uma abstração. Ele pensa diretamente em quem pode melhorar sua qualidade de vida, seu rendimento, sua habitação, seu acesso à saúde, educação, quem pode diminuir seus custos com impostos, taxas, etc. Embora sonhássemos num mundo melhor, onde o bem comum estivesse acima do individual, essa é a realidade que temos em mãos.

                   Volto, no entanto, àquilo que na vida me parece inegociável.  Impossível escolher um candidato  sem quaisquer traços de humanismo. Fascistas, racistas, xenófobos, ditadores, afanadores declarados e orgulhosos, mentirosos convictos e presunçosos, são figuras desprezíveis que não merecem sequer fazer parte da convivência humana, quanto mais liderarem  a tribo. Este ano o Crato, uma cidade libertária,  comemora os duzentos anos da Confederação do Equador. Esperamos que o sangue dos Confederados que deram a própria vida por uma nação mais justa e igualitária,  ainda continue a correr nas veias dos seus descendentes. Fascismo, não !

Crato, 02 de Outubro de 2024

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Catando ficha

 Equipe O Tropeço Sobre No Assoalho, Símbolo De Ferimento Da Pessoa  Ilustração do Vetor - Ilustração de vetor, andar: 117571312

                                                    J. FLÁVIO VIEIRA

 

                               Em pleno Século XXI , quando imaginávamos ter ultrapassado os tempos do faroeste na política brasileira, eis que percebemos que a diferença entre os Neandertais e o Homo sapiens são meramente temporais. Basta olhar um pouco  para perceber que as similaridades   entre a História Antiga e a Contemporânea são inequívocas. E pensávamos, um dia que o Coronelismo, a pistolagem, o cangaço  faziam parte de um passado longínquo ! Viram os debates em São Paulo, a maior cidade da América Latina ? E as Rinhas de Galo e de Cães não estavam proibidas ? O destino da metrópole brasileira parece que deve ser resolvido a golpes de cadeiradas ou murros. Em Sobral , uma facção criminosa ameaça de morte uma candidata que, certamente, não reza por sua cartilha. Quase quinhentos crimes eleitorais foram computados pela Justiça Eleitoral até estes dias que antecedem as eleições.  O Fascismo, definitivamente, não tem pejo em mostrar sua cara dura e sua sanha ensandecida. Defende a Pena de Morte e põe-se conta o aborto; prega a perseguição às minorias e sonha com um estado teocrático, onde a Constituição deve ser substituída por algum livro sagrado , sujeito, claro,  à interpretação pessoal de algum sacerdote  milenarista. Grita pela morte sumária dos bandidos, mas apenas para aqueles pobres, os descamisados e de pele escura. Os ricos e bacanas não pecam, cometem pequenos pecadilhos e perdoáveis contravenções.  O pecado, por essa ótica estrábica, é mais grave ou mais leve a depender, diretamente, do dízimo do pecador. A mentira deslavada , agora montada no bólido da Internet, viralizou e vem travestida de verdade com ajuda do estilismo da Inteligência Artificial.  Aqui mesmo no Crato, as propostas de campanha resvalaram, rapidamente, para o campo pessoal, entendeu-se que a vida privada tinha essa denominação porque era para ser lançada na privada. Poucas vezes se viram campanhas de tão baixo nível. Haja roupa suja pra ser lavada e estendida e quarada !

                   Ficam saudades daqueles tempos heroicos em que , alguns vezes, até as contendas eram resolvidas com trabuco, mas  as acusações no campo pessoal se limitavam a bigamias, amancebos, desvios daqueles padrões que a sociedade desenhava ao seu bel-prazer. Havia , inclusive, acusações proibitivas, principalmente relacionadas a roubos, desvios de dinheiro, corrupção. Estes eram considerados crimes hediondos e ninguém imputava qualquer candidato com essa infâmia sem que passasse por casca de bala ou lâmina de lambedeira. Hoje quem rouba é sabido, vivo, inteligente, desasnado, tem que tirar o seu, né ?

                   Um querido médico de Crato contava que, nos anos 50, em Mauriti, onde ele era proprietário de terra, um candidato a prefeito prometeu, em campanha, calçar toda a cidade. Àquela época as ruas tinham ainda o barro como piso original. Eleito, os anos se passaram e Paulino terminou a gestão sem cumprir a promessa firmada. Na eleição seguinte, colocou um candidato seu para concorrer à prefeitura. Na nova campanha eleitoral , em comício, o candidato de oposição, na sua fala, fez a crítica mais ferina para aquela época dourada:

                   --- Povo do Mauriti ! Cuidado quando vocês andarem nas ruas dessa cidade ! Arreparem ! Espiem com cuidado, viu ? Cuidado para não dar topada nas pedras do calçamento que Paulino espalhou pelas ruas e veredas dessa cidade ! Cuidado para não intrupicar no paralepidedo, sair catando ficha  e arrancar o chamboque do dedão ! Cuidado !

 

Crato, 27 de Setembro de 2024

Um Sérvulo sem Servidão

 


 

“Uma obra de arte deve levar um homem a reagir, sentir sua força,

começar a criar também, mesmo que só na imaginação. 

Ele tem de ser agarrado pelo pescoço e sacudido;

 é preciso torná-lo consciente do mundo em que vive,

e, para isso, primeiro ele precisa ser arrancado deste mundo”

Pablo Picasso

 

                                                                                Centro Cultural do Cariri inaugura exposição "Esse é Sérvulo Esmeraldo" -  Contexto Notícias

                        Lembra aquele garoto que colocava o pássaro ferido debaixo de uma cumbuca e batia, ritmicamente, na intenção de reanimá-lo, de trazê-lo de volta à vida ?  Pois a Arte tem justamente a mesma pretensão daquele guri. Crescidos,  jogados no ruge-ruge da vida,  vamos embotando a nossa vista para a diversidade incontável do mundo e começamos a enxergá-lo apenas numa única direção. Perdemos aquela certeza infantil de que a realidade é um caleidoscópio que muda a cada fração de tempo. Passamos a compreender o planeta como estático, paralisado. O artista guardou consigo os olhos da infância e tem uma visão em trezentos e sessenta graus, consegue entrever a realidade por ângulos diversos e inusitados. Ele nos coloca debaixo da sua cumbuca e, em toques rítmicos, busca nos despertar da nossa letargia, da ação do curare cotidiano. A Arte é essa ducha fria e reanimadora contra a aparente normalidade/imutabilidade da vida.

                   O Centro Cultural do Cariri Sérvulo Esmeraldo, neste último 24 de  agosto, inaugurou a mais bonita e completa Exposição que já desembarcou no Cariri : “Esse é Sérvulo Esmeraldo”. Ela comemora os 95 anos de um dos mais importantes artistas plásticos brasileiros, do Século XX, cratense da gema, criado no sopé da nossa Chapada do Araripe, cujos relevo, verdor e fontes se fizeram a seiva que alimentou sua Arte  durante toda  existência. A Exposição, que permanecerá aberta ao público até abril do próximo ano, é a mais completa que já se fez do artista e tem a curadoria de Dodora Guimarães, incansável batalhadora pela memória de Sérvulo.  

                   A visita é obrigatória a todos aqueles que desejarem conhecer os outros ângulos possíveis da vida que freme ao nosso redor. Será possível acompanhar Sérvulo em todas suas fases, uma obra gigantesca que passou do figurativismo, à Cinética, ao geométrico-construtivismo, aos excitáveis; ciclando da pintura, à xilogravura e à escultura ( essa , talvez, a sua linguagem de maior impacto e maior contributo para a Arte mundial).

                   O comum dos viventes se surpreenderá com o vanguardismo das obras que lhe tocarão os olhos. Acostumados todos com o figurativo, com a paisagem, com a reconstituição fotográfica da natureza, no primeiro momento, poderá nos bater aquela sensação do boi olhando para lua. É que Sérvulo nos leva a perceber a realidade em ângulos novos.  A todo instante, vai rodando o caleidoscópio. Ele ensina que é  preciso reeducar nossos sentidos para as novas perspectivas que se abrem , pois a Arte não é para ser compreendida, mas sentida. Na Arte, como na vida, a principal lição que brota das suas obras é que tudo, em verdade, são nuances de Sombra e de Luz.

                   Dos artistas brasileiros,  Sérvulo foi, certamente, um dos que mais entenderam que a Arte deve fazer parte da vida comum e do cotidiano das pessoas. Espalhou esculturas gigantescas pelas cidades, principalmente em Fortaleza e aqui no Crato, como intervenção na paisagem natural, criando verdadeiros museus públicos urbanos, espelhando outras visões e dimensões possíveis de serem vistas e apreciadas.

                   Sérvulo deixou o Crato, fisicamente,  aos vinte e cinco anos, morou em São Paulo, em Paris mais de duas décadas e, na maturidade, fixou-se em Fortaleza. Sua alma, no entanto, nunca se afastou, um milímetro que fosse,  da Bebida Nova. Para ser universal , ele sabia, é imprescindível olhar o mundo com o filtro regional.

                   Todos são convidados a visitar a Exposição estupenda de Sérvulo no Centro Cultural. Alguns sairão encantados, outros , simplesmente, não apreciarão, mas, o mais importante:  ninguém sairá dali com os mesmos olhos embaçados,  depois de receber o colírio artístico contra a servidão ( Viva Sérvulo!) , a  paralisia, o empalhamento, a apatia, o curare entorpecedor  da aparente Normalidade.  Vamos con(ferir)  ?

 

J. Flávio Vieira

                    

Crato, 30/08/24