sexta-feira, 24 de maio de 2024

Estradas

 


O enfermeiro Edson Izidoro Guimarães  trabalhava em uma UTI do  Hospital Salgado Filho no Rio de Janeiro. Há vinte e cinco anos descobriu-se  que ele, na Unidade, decidia, como um Deus,  quem devia ou não permanecer vivo. Pacientes mais graves e  idosos tinham sua vida abreviada pelo profissional que os dava injeções letais ou, sorrateiramente, desligava os aparelhos que os mantinham vivos. Flagrado num desses atos por uma colega de trabalho, uma investigação constatou que Edson, até então, mandara para o céu mais de cem viventes. Só em um dos seus plantões, cinco pacientes  tiveram seus dias abreviados. Preso, Izidoro confessou o crime sob alegação de que agira por pena para aliviar o sofrimento de muitos enfermos e das famílias e que não se arrependia. O aparente ato de misericórdia de Edson , descobriu-se depois, era monetizado. Ele recebia entre 100 e 1000 reais por cada um dos assassinatos ao avisar às funerárias que, com informação privilegiada, negociavam com a família os trabalhos funerários. A referida compaixão de Edson tinha, assim, uma vantagem financeira, ele não se diferenciava muito dos pistoleiros e justiceiros Brasil afora.  Terminou com uma pena branda de 31 anos de reclusão. Já deve estar novamente nas ruas cheio de peninhas com sua Pastoral da Piedade.

                   Recentemente, no Peru, a psicóloga Ana Estrada conseguiu, na justiça, o direito de  amenizar seu sofrimento, consolidando o primeiro caso peruano de Eutanásia  permitida judicialmente. Estrada era portadora de uma doença neurológica degenerativa e progressiva e mantinha-se viva com ajuda de aparelhos e alimentando-se por sondas. Mantinha o contato com o mundo apenas pelo movimento dos olhos e decidiu pela saída pela porta dos fundos, quando constatou que ficaria cega, fechando-se, assim, a única janela de comunicação que tinha com o mundo. A Eutanásia , principalmente por conta do viés religioso, é polêmica e motivo de infinitos debates planetários. Países como Bélgica, Holanda, Espanha , Portugal, Canadá, Colômbia, Cuba, Austrália e Nova Zelândia e alguns estados dos EUA já legalizaram o ato que tem respaldo em princípios da Bioética e precisa ser visto como um dos direitos fundamentais da pessoa, aquele de descer do ônibus quando a viagem já não for prazerosa.

                   Existe, no entanto, uma distância colossal separando Edson e Ana Estrada. Ele, que se dizia enfermeiro,  decidia quem devia viver ou morrer, independentemente da vontade do enfermo e fazia isso pensando na propina, era um assassino frio e calculista, um matador de aluguel. Estrada reivindicou um direito que, na verdade, não é negado sequer aos outros animais, aquele de amenizar o sofrimento quando a permanência nesse mundo é apenas uma questão burocrática, paga com o altíssimo preço de dor e penúria.

                   A visão estritamente religiosa reza que a vida é um atributo divino e, assim, só a Deus, que nos ofertou a existência, deve ser dado o direito de tirá-la. Já que recebemos o dom de existir, não cabe a nós decidir até quando o presente vale a pena ser degustado? Muitas vezes  a vida, amigos, é apenas a repetição do sofrimento de Cristo no Calvário, a degustação repetida do fel, os pregos e a coroa de espinhos.  Até o filho de Deus teve a lança do centurião para lhe aliviar do padecimento, enquanto gritava pelo Pai, reclamando do abandono a que tinha sido relegado. A psicóloga Ana abriu uma estrada !

J. Flávio Vieira

Recife, 18/05/2024

sexta-feira, 10 de maio de 2024

Mãe

 


                Meus irmãos  sempre se queixaram que minha mãe, entre os três filhos,  tinha uma preferência especial por mim. Nunca constatei a veracidade dessa denúncia, sempre tão frequente nas famílias menores. Quando a filharada é de viés nordestino, mais semelhante a um batalhão, esta infuca parece menos perceptível. Se assim aconteceu, talvez se devesse ao fato de eu ser o primogênito e de, também, ter sido aquele a ter demandado mais cuidados na infância:  hiperativo, “malino”, incontrolável mesmo com as mais fenomenais surras, ainda precisei de tratamento cirúrgico em Recife e Bahia por conta de uma poliomielite que me deixou meio saci. Dr. Fernando Filgueiras, um cirurgião geral de Salvador fez-se meu anjo protetor e pôs o menino a correr, novamente com os dois pés e ganhar o mundo. Talvez tenha vindo de Dr. Fernando a inspiração para seguir, depois, o mesmo caminho. Ganho o salvo conduto, esqueci, completamente, a vida de saci, mas não a capacidade de realizar as mesmas travessuras. Só algumas semanas atrás, um político local, também médico, numa crítica a minha pessoa, por atuação no campo cultural, me lembrou que sou portador de deficiência. Chamou-me, publicamente, de “aleijado”. D. Hélder ensinava que ao receber críticas era necessário prestar atenção de onde vinham, dependendo da fonte poderia ser um elogio. Tenho que agradecer ao político  pela lembrança e , também, pela descoberta de que existem muitos outros tipos de deficiência a escolher no cardápio das nossas relações humanas, entre elas ( a política que o diga !)  aquelas ligados ao caráter.  

                        A minha hiperatividade, numa época em que pouco se entendia deste transtorno infantil, criou, ao meu redor, toda uma narrativa, entre elas a de que eu era meio maluco. Isso nunca me transtornou. Minha mãe, no entanto, como empedernida guardiã da ninhada,  partia para cima das insinuações, como uma galinha choca. Depois, já formado, quando aqueles críticos por acaso precisavam dos meus cuidados, ela não tinha nenhum pejo em passar na cara: “Você agora tá precisando do doidim, é ? ” Talvez essa necessidade de tantos desvelos tenha levado a ciumeira dos meus irmãos Vicente e Luciano.

                        Lembrei-me de D. Ninette  quando se aproxima o Dia das Mães. Este dia que vai ficando cada ano mais triste e pesado quando já nem todos respondem à chamada nas nossas datas festivas. Perdi minha advogada há doze anos. E sei que mãe é uma peça insubstituível na vida de qualquer um de nós. Aquela , para quem, temos presunção eterna de inocência e um habeas corpus previamente assinado para todos os delitos que iremos cometer ao longo do caminho. Pais, somos apenas atores coadjuvantes na trajetória dos rebentos. Os Oscares de atriz e ator principal , direção, iluminação, efeitos especiais vão sempre para as mães.  

                         D. Ninette foi professora em escola pública, onde ampliou, em muito, sua filharada. Era amorosa e dedicada, mas criou seus três filhos sem muitos arreios. Acreditava que sua missão deveria se ater em mostrar o sentido e a direção da estrada, mas  caberia a cada um abrir a picada no meio da floresta. Com meu pai, também professor, levou uma vida simples e humilde, mas transparecia alegria e felicidade, apesar das pedras que teve que desviar na sua caminhada.

                        Prometo não entristecer no almoço do próximo domingo, mãe. Sua falta, em mim, é uma ausência povoada. Perdi minha advogada, minhas falhas já não gozam da anistia plena que sempre tiveram contigo nos julgamentos. Mas sei que você está aqui pertinho, presente na minha casmurrice, na elegância da minha filha, no sorriso da minha neta, no humor fino do teu bisneto. Há um pedacinho de você espalhado em cada um da nossa família. Quando , no almoço do domingo, todos se juntarem na mesa larga da sala, você ali estará por inteiro, inclusive o seu saci de duas pernas,  que continuou, mundo afora, espalhando doçuras e travessuras. Bem vinda, mãe !

Crato, 10/05/2024

sexta-feira, 3 de maio de 2024

A Revolução e a Cidade Esquecidas

 


O ouvinte talvez nem imagine, mas o Crato, por uma semana, um dia,  tornou-se a mais importante cidade do interior do Brasil. Tudo isso aconteceu, num 03 de maio como hoje, há 207 anos atrás. Na época, a ainda pequena Fortaleza era apenas a capital do Ceará. Nossa cidade dividia com Icó e Aracati a realeza das vilas do estado. Naquele dia, o então diácono José Martiniano de Alencar, na Sé Catedral, proclamou a Independência e a República brasileiras, exatamente quatro anos antes do Grito do Ipiranga e setenta e dois anos antes de Deodoro. Era uma extensão da chamada Revolução Pernambucana que conflagrou além do Ceará e Pernambuco, a Paraíba e o Rio Grande do Norte, com deposição dos governos locais, numa revolta até então jamais vista nesta proporção. O sonho, no Cariri, durou apenas oito dias, com a prisão dos principais comandantes, entre eles a primeira presa política brasileira, hoje uma Heroína da nação, Bárbara de Alencar. Ela viveu por quatro anos prisioneira em condições sub-humanas. Quatorze líderes foram fuzilados ou enforcados e mais de uma centena mortos em campo de batalha. Apesar de tudo, o sonho revolucionário apenas hibernou, do Crato partiriam forças compostas daqueles revolucionários  para , em 1823, levar a Independência do Brasil para o Piauí e o Maranhão  e , em 1824, deflagrariam a Confederação do Equador que, este ano, comemora seu bicentenário.  Entre 1817 e 1824, o Crato brilharia como  uma das mais importantes e visionárias cidades do Brasil, uma nova Vila Rica.

                   Boa parte dos caririenses, certamente, nunca ouviu falar desta história. Poucos sabem quem foram José Martiniano de Alencar, Tristão Gonçalves, Bárbara. As Revoluções de 1817 ( que, por isso mesmo é conhecida como a Revolução Esquecida)  e 1824 ocupam, em geral, apenas pequenas páginas de livros de História Oficial. A Inconfidência Mineira que, apesar do seu pioneirismo, não passou de uma conspiração de gabinete e só teve uma morte, a do mais humilde do grupo, Tiradentes, tem uma relevância estrondosa. Bárbara, a primeira presa política do país, teve seu nome eternamente detratado, inclusive por membros de sua própria família.  Por que tamanha disparidade?   

                   Sempre é bom lembrar que esses apagamentos não acontecem por mero acaso. A Inconfidência era independentista e foi incensada pela Monarquia que duraria ainda quase um século. 1817 e 1824 tinham junto um sonho republicano e, assim, viu-se colocada no sótão da História nas mais de sete décadas que se seguiram. Por outro lado, elas aconteceram no Nordeste do Brasil, o patinho feio dos cânones históricos, longe da caixa de ressonância do Sudeste do país, então já em escalada econômica com a mineração. Bárbara pagou a conta do protagonismo feminino numa sociedade intensamente patriarcal. No Sul Cearense, então, uma sociedade de viés feudal ( apesar de 1817 e 1824 passam  longe de  revoluções populares), o Conservadorismo predominou sempre  pelo temor de subversão da ordem estabelecida.

                   O grande problema, porém, é que não apenas 1817 e 1824 são Revoluções Esquecidas. O Crato, hoje, é também uma cidade que se contaminou com o esquecimento. Tínhamos uma Praça 3 de Maio que se trocou para o nome de um político que passou por aqui em campanha: Juarez Távora. A Casa de Bárbara foi destruída e sua imagem amarrotada por uma estátua horrorosa;  Tristão e José Martiniano foram degredados pela História da região;  Pinto Madeira, o contrarrevolucionário, -- pasmem ! --  nomina todo um Bairro  e uma grande avenida que une o Crato à aristocrática Barbalha. A Cidade de Frei Carlos , por fim, joga no lixo o pouco que havia da sua memória esfacelando o Museu J. de Figueiredo Filho cujo acervo foi jogado no antigo Museu de Fósseis. Fóssil !  Fóssil ! Isso é quase uma profecia!

                   O 3 de Maio desse ano é um momento para se refletir sobre a glória do passado da nossa cidade. De uma época em que lutávamos pela grandeza  do país. Hoje sequer conseguimos batalhar por nós mesmos, somos , como  as revoluções passadas, apenas esquecimento.

Crato, 03/05/24