sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Aquarius

 


 

                                   Os sinais , pensou consigo mesmo, eram evidentes demais para se tratar de mera coincidência. Dias antes,  tivera um daqueles sonhos premonitórios que tanto assaltavam os profetas antigamente. Viu-se perseguido, no meio da floresta , por um inimigo invisível e misterioso de que percebia apenas o ronronado terrível e o pisar forte,  macerando a folhagem seca que atapetava o chão. Correndo a esmo, como caça que foge do predador, caindo em tropicões pelo caminho, finalmente, exausto,  estendeu-se no chão, aguardando o desfecho final  da sua vida. Foi quando uma voz poderosa invadiu o silêncio do matagal e acalmou todos os seus presságios: “Ele Virá!” . Logo depois, soube, pelo noticiário,  do alinhamento dos planetas júpiter e saturno que dobrariam a luminosidade no céu, como a Estrela de Davi. Seriam os prenúncios do advento  da Era de Aquarius, como já haviam adiantado visionários esotéricos:  a chegada de novos céus  e uma nova terra, novas descobertas e vivências e o nascimento de um arauto que conduzisse a Terra por trajetórias de luz e conhecimento? Lembrou ainda que, como há dois milênios, viviam agora sob o julgo de um tirano, posto no poder por descendentes daqueles mesmos que um dia tinham escolhido Barrabás. Por outro lado, como no Egito de Ramsés, a praga havia se disseminado por todo o planeta, num lastro de morte e sofrimento que se assemelhava ao final bíblico dos tempos.  Dentro da sua alma ecoou, novamente, aquelas palavras tenebrosas do sonho, agora como uma promessa: “Ele virá!”

                                   Saiu, então, buscando uma luz que lhe apontasse, como aos Reis Magos, o exato local do renascimento do Messias. Percorreu palácios, mansões, shoppings, academias, sem que percebesse um só sinal do  aparecimento da divindade. Entrou nos templos que lhe pareceram, na sua maioria, meras casas de câmbio onde se comercializava a fé, onde se trocava angústia por promessa em notas falsas. Os vendilhões, que um dia tinham sido expulsos do templo, agora, como grileiros, os tinham tomado para si, num permitido processo de usucapião . Descobriu que o culto ao Bezerro de Ouro tinha prosperado. Soube de incontáveis histórias de perseguidos imigrantes que , afugentados de suas pátrias, estavam, agora, mendigando em terras estranhas, repetindo uma contínua fuga para o Egito. Percebeu que debaixo de cada marquise de rua, debaixo de cada viaduto, em cada palafita, em cada barraco de favela,  em cada barraca  de acampamento  existia um novo Presépio de Natal.

                                    Foi quando despertou:  na outra encarnação, o Homem escolhera a manjedoura como berço e pais humildes como tutores. Percorreu, então, as ruas que agora se faziam casas de incontáveis mendigos, desamparados como os da antiga Galileia. Descobriu que a perseguição e morte de crianças não tinham acabado no reinado de Herodes, viu nos outdoors  as fotos: Ágata, Miguel, Rebeca, Emilly, João Pedro, Marcos Vinicius... chacinados pelos Tonton Macoute do rei, aqueles que eram pagos para protegê-los.  O Natal comemorava-se nas ruas iluminadas, nas promoções faiscantes  das vitrines, nos presentes de um ardiloso papai noel. Ele não existia no coração das pessoas.

                                   De repente, assaltou-lhe uma certeza, se o Arauto retornasse à Terra, seria massacrado talvez na infância, submetido a trabalho escravo e infantil desde cedinho e, depois, começando a pregar, taxado, imediatamente, de revolucionário, comunista, subversivo. Seria preso e torturado ( torturador agora é exaltado como herói) e , desta vez, nem chegaria perto dos trinta e três anos.

                                   Na volta, desiludido, viu-se em meio a moradores de rua . Recebiam algumas quentinhas de entidades assistenciais. Eram poucas, não suficientes para todos. Viu-os dividindo entre si o pouco alimento, inclusive, com alguns cães que lhes faziam companhia na selva da cidade. Como se se repetisse o milagre dos peixes e dos pães, como se replicasse ali a partilha do pão e do vinho  na Santa Ceia. Pensou consigo:

                               --- Encontrei ! Jesus está aqui e eu nem tinha percebido !

 

Crato, 25/12/2020     



Nenhum comentário: