sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Toró de Corisco

 


De que se saiba e se tenha contado ou exagerado, aquela presepada nunca tinha acontecido em Matozinho. Até mesmo D. Gualterina Jurumenha, que sob imensos e desmedidos protestos, era apontada como a mais antiga moradora da vila, jurara ,de pé junto, que jamais tinha presenciado uma coisa escalafobética daquele porte. E olhe que D. Guaju viajara montada em pterodátilo e não tinha saído na  pintura da Ceia Larga, porque, na hora, estava passando nata no pão para trazer à mesa, junto com o vinho. A felicidade é que tudo acontecera no quebrar da barra, quando todo mundo ainda estava se espreguiçando, arrumando os teréns e os atavios para ir para a roça ou para o comércio, coisa de três e meia da manhã, se muito fosse.

                                   E tudo rompeu sem muito alarido, sem trilha sonora. Sem mais nem menos, sem me dá cá tua arupemba, uma chuva de pedregulhos caiu em cima de Matozinho. E sabe-se lá donde veio aquilo ? Veio xexo, veio pedrinha e veio pedrão. Um rebolo de rocha do tamanho de uma jaca varou o teto da Igreja de Nossa Senhora dos Desafogados. Esparramou-se por cima do altar mor e inutilizou as galhetas com o vinho, a água e o óleo do Santíssimo. Um xexo menor deu uma chulipa no quengo de Pedro Coió que, naquelas horas, tinha se aboletado perto de casa, acocorado debaixo de um pé de pinhão roxo, se espremendo como se tivesse em parto atravessado. Pedro caiu duro e babando e só tornou dois dias depois, sob o efeito de um chá de jalapa, chamando a mulher de mamãe e conversando mais atrapalhado que maracanã em apanha de milho.

                                    Ao amanhecer, todo mundo tinha uma história para contar em Matozinho. Telhas quebradas, criações atingidas e aleijadas, fragmentos de pedras negras espalhadas por um raio que se estendia de Bertioga à Serra da Jurumenha, coisa de mais de dez léguas de beiço. Alguns feridos, mas quase todos sem muita gravidade. A pracinha da Matriz, nos dias pós saraivada de pedra, tornou-se a verdadeira acrópole de Matozinho. Como diabos se explicava aquilo, se não fosse um castigo de Deus ? Uns beatos botaram  a culpa nas safadezas e escandelos da Rua do Caneco Amassado. E aí debulharam-se casos e mais casos de destroços na tradicional família matozenses: amasios, incestos, roubos, pederastia ( um nome que é mais feio que o pecado que representa), sapateados, traições de compadre com comadre e por aí vai...  Mas outras versões surgiram. Alguém imputou  de culpa  D. Miraldina, uma das mais ferrenhas beatas da cidade. Matozinho, há cinco anos, passava um período de seca brabo, desses que piaba, pra sobreviver, tinha que usar aqualung. Contaram que ela, de tanto e tanto rezar pedindo chuva, terminou por se aborrecer em uma das novenas , encarou , séria, São Pedro e ameaçou:

                                   --- Se vira, véi broco ! Se tu não mandar chuva, não vai ter festa pra tu esse ano, não, joviu ? Tu só quer ser as prega !

                                   Diz um testemunha da oração que São Pedro , já meio moco por causa da idade, deve ter entendido: “Tu tem que mandar chuva, nem que seja de pedra!” O professor Tiburtino Pereira falou bonito, numa tal de chuva de meteorito, um rebolo que tinham jogado lá de cima dos ares, em riba de Matozinho, que se espatifou nos ares como para-brisa de carro quando encontra de proa urubu , mas não sabia quem era o responsável pela arte.

                                   O certo é que a notícia se espalhou rápido e a aparente tragédia aos poucos se foi transformando em graça alcançada. Uma récua de pessoas começou a chegar a Vila, atraída pela novidade. Pedra passou a ser o artigo de luxo  mais vendável em  Matozinho. Gente reformou casa, outros compraram bicicletas e jericos, tudo às custas da chuva misteriosa. Uns três meses depois do fenômeno , o boom começou a arrefecer. Os compradores desconfiaram que tinha pedra negra demais sendo comercializada e, quando muitas começaram a desbotar e perder a tinta, entenderam que era hora de se aquietar.

                                   Nestes dias, numa pedreira na subida da Serra da Jurumenha, Nicolino e Sebasto, trabalhadores braçais, empunhando marretas, quebravam rochas que seriam encaminhadas para construção de cercas de pedra na fazenda do prefeito Sinderval Bandalheira. Nicolino cansado, suado, queixou-se ao companheiro daquela existência  difícil, uma vida de Sísifo.

                                   --- Sebasto, eita vidinha do cão ! Uma ruma de gente por aí numa boa, enfiando bufa em cordão e a gente aqui se matando... E o padre ainda fala que Deus é justo !

                                   --- Nicó, nesse mundo a gente tá lascado, mas padre Jiderval já disse que no outro tudo vai mudar. Quem é prego aqui,  lá vai ser martelo!

                                   ---  Sebasto, Sebasto ! Que conversa fiada ! Tu num tá rezando o Pai Nosso, não ? Lá diz, negro velho : “Assim na terra, como no Céu!” A cantiguinha vai continuar a mesma !

                                   --- Nicó, e nós vamos quebrar é pedra lá no céu, de novo ? Pra que diabo vão precisar de pedra, lá, me diga, homem de deus !?

                                   --- Ora, pra quê ? Tu num viu o toró de xexo , não, seu Zé Mané ? Vamos quebrar pedra pra São Pedro fazer corisco e depois sapecar cascalho no pé d´ouvido da gente !

 

Crato, 09/09/2020

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