Zé Ideia chegou na Siqueira Campos meio cabreiro, olhando
de um lado para o outro, cabeça em
feitio de ventilador. Parecia cubar a chegada de possíveis cobradores, tão
frequentes nos últimos tempos. Nem isso ! Na cidade, em isolamento social, por causa da epidemia,
quase não se via viv’alma por perto. Um ou outro velho teimoso, desses que não
acatam decretos de governo nem ordens de filhos, espalhavam-se , em mínimas
rodinhas, pelos cantos da praça. Quem um dia podia imaginar uma loucura
daquelas ? Aquilo, imaginou Zé, era pior do que a doença. Afinal, a praça sempre foi a difusora local das
notícias. Como , agora, se abalizar das fofocas de pé de ouvido e de beira de
alcova: Quem com quem ? Quem quebrou ? Quem
adormeceu e não amanheceu ? Quem foi contemplado com a peruca de touro ? Quem
anda fazendo falso à bandeira nacional ? Quem acaba de ensebar o capim ? Quem
está com a burra amarrada na porta, esperando a viagem derradeira ? Estas
novidades não saem nos jornais e nem nas rádios. Divulgam-se nas rodinhas de
praça, de língua pra orelha, sempre se mantendo o sigilo das fontes, é claro !
Zé Ideia
chegou rápido à conclusão , olhando para a praça devastada, que aquela se fazia
uma das maiores consequências desse tal de Coronavírus. Pior que o medo da
doença e da morte. Trancados em casa, as pessoas metiam-se em túmulos, antes de
adoecerem. Atormentadas, esperando por um inimigo invisível que podia entrar
pela fresta da porta ou pela réstia do telhado. O medo entranhava-se pelos
poros, quebrando o cotidiano das criaturas, impedidas de viver, algemadas em
seus porões, pagando por um crime que
não lembravam terem um dia cometido. Lojas fechadas; boticas entreabertas; botequins
lacrados; feiras que eram livres, agora enclausuradas; até as igrejas de portas
batidas: nem com Deus e os santos era possível confabular e dividir as
angústias e apreensões!
Zé Ideia
aproximou-se de três jogadores de dominó, únicos interlocutores possíveis
naquele deserto, e, enquanto peruava , aproveitou para divulgar um pouco sua
filosofia, ao som das pedras do dominó que aos poucos , número por número,
sequenciavam-se no tabuleiro. Para Zé , a possibilidade de dor e sofrimento era
apenas uma das faces da epidemia. Pondo em risco a sobrevivência, ela arrancava
das pessoas o único significado da existência: a possibilidade de dividir com
os outros passageiros a alegria e os prazeres da viagem. Zé Ideia , em meio ao
chacoalhar das peças do jogo, mostrou os amigos, alguns meio mal amanhados em
suas máscaras, que o governo errou, redondamente, em determinar os serviços essenciais que
podiam permanecer abertos.
--- Os bares não podem ser fechados , dá pra suportar essa vida
sem anestesia ? Onde diabo os pinguços e os aposentados vão sobreviver sem seus
Samu´s ? Os cabarés, também, precisam ficar escancarados ! São serviços
essenciais ! Onde os carentes desse
mundo vão poder adquirir uma nesgazinha de amor, uma jura falsa, um elogio
tabelado ? Rezadores e meizinheiros também precisam ter suas bancas abertas e
regulamentadas ! Eles são os prontos socorros, as Uti´s dos pobres desse mundo! Se D. Regina, Maria
Raio X e Quinquelê curavam até espinhela
caída, que dirá um vírus velho desse que
parece mais um caroço de mamona ! As fofoqueiras da cidade, por outro lado,
precisam receber o auxílio do governo ! Estão impedidas de trabalhar! Tirante
uma ou outra confusão de vizinho, já não têm assunto para debulhar! Como pode
uma cidade viver sem escândalos meu Deus ? Que graça tem ? Adivinhadores de
Pule de Jogo do Bicho, também, não podem ser impedidos de trabalhar! São
essenciais ! Vendem o sonho e sem ele não dá pra viver, principalmente em
tempos de tanto pesadelo !
Pedras e
carreirões ,na mesa, tentavam se encaixar,
partida após partida. Como as ideias de Zé ! Os homens mascarados continuavam aguardando tempos melhores para que pudessem colocar as outras máscaras que
tinham deixado, por enquanto, confinadas em algum lugar nas suas casas.
Crato, 17/04/20
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