sexta-feira, 17 de abril de 2020

A Essência e a Máscara





Zé Ideia  chegou na Siqueira Campos meio cabreiro, olhando de um lado para o outro,  cabeça em feitio de ventilador. Parecia cubar a chegada de possíveis cobradores, tão frequentes nos últimos tempos. Nem isso ! Na cidade,  em isolamento social, por causa da epidemia, quase não se via viv’alma por perto. Um ou outro velho teimoso, desses que não acatam decretos de governo nem ordens de filhos, espalhavam-se , em mínimas rodinhas, pelos cantos da praça. Quem um dia podia imaginar uma loucura daquelas ? Aquilo, imaginou Zé, era pior do que a doença. Afinal,  a praça sempre foi a difusora local das notícias. Como , agora, se abalizar das fofocas de pé de ouvido e de beira de alcova: Quem com quem ?  Quem quebrou ? Quem adormeceu e não amanheceu ? Quem foi contemplado com a peruca de touro ? Quem anda fazendo falso à bandeira nacional ? Quem acaba de ensebar o capim ? Quem está com a burra amarrada na porta, esperando a viagem derradeira ? Estas novidades não saem nos jornais e nem nas rádios. Divulgam-se nas rodinhas de praça, de língua pra orelha, sempre se mantendo o sigilo das fontes, é claro !
                                   Zé Ideia chegou rápido à conclusão , olhando para a praça devastada, que aquela se fazia uma das maiores consequências desse tal de Coronavírus. Pior que o medo da doença e da morte. Trancados em casa, as pessoas metiam-se em túmulos, antes de adoecerem. Atormentadas, esperando por um inimigo invisível que podia entrar pela fresta da porta ou pela réstia do telhado. O medo entranhava-se pelos poros, quebrando o cotidiano das criaturas, impedidas de viver, algemadas em seus porões,  pagando por um crime que não lembravam terem um dia cometido. Lojas fechadas; boticas entreabertas; botequins lacrados; feiras que eram livres, agora enclausuradas; até as igrejas de portas batidas: nem com Deus e os santos era possível confabular e dividir as angústias e apreensões!
                                   Zé Ideia aproximou-se de três jogadores de dominó, únicos interlocutores possíveis naquele deserto, e, enquanto peruava , aproveitou para divulgar um pouco sua filosofia, ao som das pedras do dominó que aos poucos , número por número, sequenciavam-se no tabuleiro. Para Zé , a possibilidade de dor e sofrimento era apenas uma das faces da epidemia. Pondo em risco a sobrevivência, ela arrancava das pessoas o único significado da existência: a possibilidade de dividir com os outros passageiros a alegria e os prazeres da viagem. Zé Ideia , em meio ao chacoalhar das peças do jogo, mostrou os amigos, alguns meio mal amanhados em suas máscaras, que o governo errou, redondamente,  em determinar os serviços essenciais que podiam permanecer abertos.
                        --- Os bares não podem ser fechados , dá pra suportar essa vida sem anestesia ? Onde diabo os pinguços e os aposentados vão sobreviver sem seus Samu´s ? Os cabarés, também, precisam ficar escancarados ! São serviços essenciais !  Onde os carentes desse mundo vão poder adquirir uma nesgazinha de amor, uma jura falsa, um elogio tabelado ? Rezadores e meizinheiros também precisam ter suas bancas abertas e regulamentadas ! Eles são os prontos socorros, as Uti´s  dos pobres desse mundo! Se D. Regina, Maria Raio X  e Quinquelê curavam até espinhela caída,  que dirá um vírus velho desse que parece mais um caroço de mamona ! As fofoqueiras da cidade, por outro lado, precisam receber o auxílio do governo ! Estão impedidas de trabalhar! Tirante uma ou outra confusão de vizinho, já não têm assunto para debulhar! Como pode uma cidade viver sem escândalos meu Deus ? Que graça tem ? Adivinhadores de Pule de Jogo do Bicho, também, não podem ser impedidos de trabalhar! São essenciais ! Vendem o sonho e sem ele não dá pra viver, principalmente em tempos de tanto pesadelo !
                                   Pedras e carreirões ,na mesa,  tentavam se encaixar, partida após partida. Como as ideias de Zé !  Os homens mascarados continuavam aguardando  tempos melhores para que pudessem colocar as outras máscaras que tinham deixado, por enquanto, confinadas em algum lugar nas suas casas.

Crato, 17/04/20

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