sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Cantando galope bem longe do mar


Emílio Alves Ferreira.  Nome de matuto,  mas que soa como de um perfeito  poeta parnasiano. Seja lá quem foi o responsável pela designação -- Mãe, tia, Avó, pai -- o fez como um visionário, com poderes quase que premonitórios. Crescido em Matozinho, Emílio , desde pixototinho, mergulhou nas rodas de violeiros e emboladores. Não podia ver um pinicado de viola, uma batida de pandeiro que logo se acercava como se se tratasse de um pião, uma baladeira, um pirulito. No Jardim da Infância, sob a batuta da professora e generala  Zenira Capistrano, Emílio já improvisava os primeiros versos e estrofes. A mestra ralhava com ele pela utilização da delicada língua do povo ( o Capoeirês , como batizara Zenira), nas suas improvisações, fugindo dos rigores da linguagem formal, perseguida por Zenira com a determinação de soldado de polícia em busca de malfazejo. Menino pobre, cedo Emílio teve que abandonar a escola , na luta pela sobrevivência, juntando-se aos pais, feirantes na região, que se deslocavam de cidade em cidade, vendendo ferragens --- chocalhos, martelos, foices, enxadas, dobradiças --- em toalhas estendidas no meio da rua, nas feiras livres da região.
                                   Aos quinze anos, aproveitando um ano de seca braba, desses em que de verde só restava papagaio, juazeiro e pano de bilhar, Emílio fugiu para capital, pegando carona num caminhão de frete. Chegou com uma mão na frente e outra atrás. Arranjou um empregozinho numa pensão de meio de estrada. Pareceu-lhe a atividade ideal para um retirante.  Ali já conseguia a boia, o quartinho para dormir e uns trocados no final de semana. No domingo, na folga, pegou um ônibus e dirigiu-se até à praia. Seus olhos ,ressequidos como língua de periquito,  extasiaram-se ao ver aquele mundão de água que parecia não ter fim. De si para si, decidiu que vivera até então num inferno e fugira para o paraíso. Emílio nem lembrou das espadas flamejantes que se sucederiam após a degustação dos frutos da árvore do bem e do mal.
                                   Passaram-se os anos e Emílio , finalmente, conseguiu uma atividade mais consistente e melhor remunerada. Começou a trabalhar na REFESA , vendendo passagens de trem. A poesia continuou, esporadicamente, a bater à sua porta, já sem o ímpeto de outrora. Um dos seus poemas vingou e fê-lo conhecido pela direção geral da empresa. Falava do seu trabalho como vendedor de passagens, ainda num linguajar bem matuto, concluindo que, na realidade, ele vendia sonhos, perspectivas, oportunidades e horizontes para pessoas que buscavam felicidade e prosperidade em outros lugares, sem entender que a geografia nada tinha relação de causa e efeito com a história. Impressionados com os versos, os dirigentes da REFESA o incentivaram a continuar os estudos. Emílio procurou um  Supletivo e finalizou o Ginásio e Científico. Depois, enveredou por um curso de letras, com grande empenho e brilhantismo. A ascensão nos estudos coincidiu com sua progressão na carreira e o poeta, aos cinquenta anos,  tornou-se chefe da Agência da REFESA na Capital.  A poesia o acompanhou de perto em todo o percurso e seu estilo, antes profundamente popular, agora com o banho da academia,  começou a ganhar também algumas nuances mais eruditas.
                                   Entre uma passagem e outra, uma e outra quadra, nosso vate conheceu uma passageira, D. Clotilde Mangabeira, que lhe comprou um bilhete para Arrojado. Conversaram um pouco e despediram-se no guichê de forma algo mais calorosa do que o habitual. O certo é que Clotilde voltou da viagem dias depois: tinha ido visitar uma tia prestes a abotoar a ceroula. No retorno, a conversa até então em stand-by,  tomou, de novo, sustança nas canelas.  Rolou um crush que se encaminhou para o final mais perigoso: o altar. Vieram os filhos  e, depois, a debandada deles do ninho, seguindo quase que o destino do pai. Aos setenta , D. Clotilde amofinou diante de uma leucemia com um arremate trágico depois de  dois meses de doença.  Emílio , cuja paixão carnal já virara vegana, perdeu a companheira e o rumo. Triste, capiongo, já com a ferrugem do tempo lhe oxidando o corpo e a alma,  finalmente, resolveu fazer o caminho de volta para Matozinho, onde , um dia, deixara um poema escrito pela metade.
                                   Emílio fez a estrada de volta , ao reverso do Conselheiro: O Mar virou Sertão.  Só ao chegar,  compreendeu que , sessenta anos depois, já não existia mais a Matozinho que um dia deixara para trás. O cenário mudara, os personagens antigos tinham sido substituídos por outros mais novos, o enredo ganhara outras tonalidades e nuances. Nosso poeta percebeu, rapidamente, que de ator passaria a mero expectador da peça teatral que já não contava mais sua história. O Tempo, diretor do espetáculo, providenciara uma completa mudança de curso na urdidura da trama.  Existiam ainda alguns raros testemunhas da sua época. Com eles convivia mais amiúde, lembrando e recordando um passado que escorrera rio abaixo e que nunca mais retornaria no curso das águas.
                                   O poeta voltou a poetar, mas sequer tinha quem admirasse seus versos. Cientes de que o velho Emílio possuía uma gorda aposentadoria, apareceram pretendentes, a maior parte mocinhas jovens, perdidamente apaixonadas pela pensão do chefe da estação. Ele ainda atreveu-se, uma ou outra vez, a botar abaixo as carradas que apareciam, mas percebeu que era terra demais para carregar com seu velocípede. Aos amigos reclamava que fizera um acordo com o senhor da vida, o tempo, mas que ele, de início tão fiel, nos últimos anos lhe puxara o tapete já puído.
                                   Um dia, misteriosamente, nosso poeta desapareceu. Nunca mais foi visto. Teria voltado para capital ? Intencionalmente saíra da vida pelas portas dos fundos, pulando no Rio Paranaporã , naquele ano de cheia ? Ou imiscuíra-se na Serra da Jurumenha , sem destino, doando-se como pasto às aves de rapina ? Ninguém nunca soube. Na casa dele encontraram tudo posto, cuidadosamente, no lugar. Em cima da mesa deixara seu último poema, como um réquiem, com sua imponente assinatura logo abaixo : Emílio Alves Ferreira.

Tentei com o Tempo fazer um contrato ,
Deixá-lo passar como um rio fluindo,
Sem quedas , marolas, cantando, sorrindo
Na paz que conduz os mais simples regatos.
A mim caberia, seguindo esse trato,
Poder apressá-lo ou fazê-lo parar,
Veloz na tristeza , moroso no amar.
E jovens cumprimos com fé nosso plano
Até que chegaram os tempos insanos
E os tratos  rebentam nas flagras do mar.

Bem lesto o tempo esporou seu corcel,
Senti no meu corpo, o fel , a ferrugem
A morte roçando com sua penugem
O travo dos anos com seu escarcéu.

De chofre  a penúria estendeu o seu véu:
  Almoço mingau, minha janta é um chá,
Meus olhos nublados, meio moco e gagá,
Com chumbo nos pés, sem pintura e reboco
Pareço um calunga! Pois ele achou pouco:
De faca na mão resolveu me capar.

                                                                                          Crato, 06/02/2020

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