Emílio Alves
Ferreira. Nome de matuto, mas que soa como de um perfeito poeta parnasiano. Seja lá quem foi o
responsável pela designação -- Mãe, tia, Avó, pai -- o fez como um visionário,
com poderes quase que premonitórios. Crescido em Matozinho, Emílio , desde
pixototinho, mergulhou nas rodas de violeiros e emboladores. Não podia ver um
pinicado de viola, uma batida de pandeiro que logo se acercava como se se
tratasse de um pião, uma baladeira, um pirulito. No Jardim da Infância, sob a
batuta da professora e generala Zenira
Capistrano, Emílio já improvisava os primeiros versos e estrofes. A mestra
ralhava com ele pela utilização da delicada língua do povo ( o Capoeirês , como
batizara Zenira), nas suas improvisações, fugindo dos rigores da linguagem
formal, perseguida por Zenira com a determinação de soldado de polícia em busca
de malfazejo. Menino pobre, cedo Emílio teve que abandonar a escola , na luta
pela sobrevivência, juntando-se aos pais, feirantes na região, que se
deslocavam de cidade em cidade, vendendo ferragens --- chocalhos, martelos,
foices, enxadas, dobradiças --- em toalhas estendidas no meio da rua, nas
feiras livres da região.
Aos quinze
anos, aproveitando um ano de seca braba, desses em que de verde só restava
papagaio, juazeiro e pano de bilhar, Emílio fugiu para capital, pegando carona
num caminhão de frete. Chegou com uma mão na frente e outra atrás. Arranjou um
empregozinho numa pensão de meio de estrada. Pareceu-lhe a atividade ideal para
um retirante. Ali já conseguia a boia, o
quartinho para dormir e uns trocados no final de semana. No domingo, na folga,
pegou um ônibus e dirigiu-se até à praia. Seus olhos ,ressequidos como língua
de periquito, extasiaram-se ao ver
aquele mundão de água que parecia não ter fim. De si para si, decidiu que
vivera até então num inferno e fugira para o paraíso. Emílio nem lembrou das
espadas flamejantes que se sucederiam após a degustação dos frutos da árvore do
bem e do mal.
Passaram-se
os anos e Emílio , finalmente, conseguiu uma atividade mais consistente e
melhor remunerada. Começou a trabalhar na REFESA , vendendo passagens de trem. A
poesia continuou, esporadicamente, a bater à sua porta, já sem o ímpeto de outrora.
Um dos seus poemas vingou e fê-lo conhecido pela direção geral da empresa.
Falava do seu trabalho como vendedor de passagens, ainda num linguajar bem
matuto, concluindo que, na realidade, ele vendia sonhos, perspectivas,
oportunidades e horizontes para pessoas que buscavam felicidade e prosperidade
em outros lugares, sem entender que a geografia nada tinha relação de causa e
efeito com a história. Impressionados com os versos, os dirigentes da REFESA o
incentivaram a continuar os estudos. Emílio procurou um Supletivo e finalizou o Ginásio e Científico.
Depois, enveredou por um curso de letras, com grande empenho e brilhantismo. A
ascensão nos estudos coincidiu com sua progressão na carreira e o poeta, aos
cinquenta anos, tornou-se chefe da
Agência da REFESA na Capital. A poesia o
acompanhou de perto em todo o percurso e seu estilo, antes profundamente
popular, agora com o banho da academia, começou a ganhar também algumas nuances mais
eruditas.
Entre uma
passagem e outra, uma e outra quadra, nosso vate conheceu uma passageira, D.
Clotilde Mangabeira, que lhe comprou um bilhete para Arrojado. Conversaram um
pouco e despediram-se no guichê de forma algo mais calorosa do que o habitual.
O certo é que Clotilde voltou da viagem dias depois: tinha ido visitar uma tia
prestes a abotoar a ceroula. No retorno, a conversa até então em stand-by, tomou, de novo, sustança nas canelas. Rolou um crush que se encaminhou para o final
mais perigoso: o altar. Vieram os filhos
e, depois, a debandada deles do ninho, seguindo quase que o destino do
pai. Aos setenta , D. Clotilde amofinou diante de uma leucemia com um arremate
trágico depois de dois meses de doença. Emílio , cuja paixão carnal já virara vegana,
perdeu a companheira e o rumo. Triste, capiongo, já com a ferrugem do tempo lhe
oxidando o corpo e a alma, finalmente,
resolveu fazer o caminho de volta para Matozinho, onde , um dia, deixara um
poema escrito pela metade.
Emílio fez a
estrada de volta , ao reverso do Conselheiro: O Mar virou Sertão. Só ao chegar, compreendeu que , sessenta anos depois, já não
existia mais a Matozinho que um dia deixara para trás. O cenário mudara, os
personagens antigos tinham sido substituídos por outros mais novos, o enredo
ganhara outras tonalidades e nuances. Nosso poeta percebeu, rapidamente, que de
ator passaria a mero expectador da peça teatral que já não contava mais sua
história. O Tempo, diretor do espetáculo, providenciara uma completa mudança de
curso na urdidura da trama. Existiam
ainda alguns raros testemunhas da sua época. Com eles convivia mais amiúde,
lembrando e recordando um passado que escorrera rio abaixo e que nunca mais retornaria
no curso das águas.
O poeta
voltou a poetar, mas sequer tinha quem admirasse seus versos. Cientes de que o
velho Emílio possuía uma gorda aposentadoria, apareceram pretendentes, a maior
parte mocinhas jovens, perdidamente apaixonadas pela pensão do chefe da estação.
Ele ainda atreveu-se, uma ou outra vez, a botar abaixo as carradas que
apareciam, mas percebeu que era terra demais para carregar com seu velocípede.
Aos amigos reclamava que fizera um acordo com o senhor da vida, o tempo, mas
que ele, de início tão fiel, nos últimos anos lhe puxara o tapete já puído.
Um dia,
misteriosamente, nosso poeta desapareceu. Nunca mais foi visto. Teria voltado
para capital ? Intencionalmente saíra da vida pelas portas dos fundos, pulando
no Rio Paranaporã , naquele ano de cheia ? Ou imiscuíra-se na Serra da
Jurumenha , sem destino, doando-se como pasto às aves de rapina ? Ninguém nunca
soube. Na casa dele encontraram tudo posto, cuidadosamente, no lugar. Em cima
da mesa deixara seu último poema, como um réquiem, com sua imponente assinatura
logo abaixo : Emílio Alves Ferreira.
Tentei com o Tempo fazer um contrato ,
Deixá-lo passar como um rio fluindo,
Sem quedas , marolas, cantando,
sorrindo
Na paz que conduz os mais simples
regatos.
A mim caberia, seguindo esse trato,
Poder apressá-lo ou fazê-lo parar,
Veloz na tristeza , moroso no amar.
E jovens cumprimos com fé nosso plano
Até que chegaram os tempos insanos
E os tratos rebentam nas flagras do mar.
Bem lesto o tempo esporou seu corcel,
Senti no meu corpo, o fel , a
ferrugem
A morte roçando com sua penugem
O travo dos anos com seu escarcéu.
De chofre a penúria estendeu o seu véu:
Almoço mingau, minha janta é um chá,
Meus olhos nublados, meio moco e
gagá,
Com chumbo nos pés, sem pintura e
reboco
Pareço um calunga! Pois ele achou
pouco:
De faca na mão resolveu me capar.
Crato,
06/02/2020
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