Quem chegasse a Matozinho
estranharia, logo de antemão, algumas peculiaridades da vila. Abandonada no
meio do sertão, tinha-se a clara ideia de que ali nunca houvera administradores
municipais. Quem, por sua conta e risco, tivesse a visitado alguns anos atrás e
, por acaso, retornasse, se certificaria de que aquilo era um fóssil de uma
cidade pré-histórica. Permaneciam as duas ruazinhas principais, algumas poucas
travessas, a pracinha da Igreja da Sé, algumas bodegas , a botica e uns dois
bares de ponta de rua. Parece que Matozinho brincara de estátua com algumas
outras vilas vizinhas e perdera a batalha. O prefeito atual era um tal de
Nicolau Canuto, no terceiro ano do seu segundo mandato. Dizia-se em Matozinho
que suas únicas obras, além daquelas que deixara no banheiro da prefeitura,
inauguradas com pompa e foguetório sãojoanesco foram: um orelhão do sítio
Timbaúba, uma cacimba de vinte palmos nas Calabaças e um forno de tijolo para
fazer sequilhos no Marimbondo.
Canuto
chegara a Matozinho como tropeiro, firmara um pequeno comerciozinho de
confecções na feira livre e depois estabeleceu-se numa lojinha. O salto para se
tornar, de repente, um cabra remediado, o pulo do gato, ninguém sabia explicar
com clareza. Falavam em uns roubos de alguns “galegos”, anos antes, que ele
poderia estar envolvido. A oposição, ao
menos, pinicava seu oratório. O pobre sabe que, por trás de cada milagre desse
tipo, existe um santo protetor de
discutível santidade. Essa loteria obscura terminou por levar Nicolau para os
campos minados da política matozense.
Canuto,
talvez por conta da sua atividade de mascate, era muito vaidoso. Usava um
chapéu Ramenzoni, vestia-se de linho branco, invariavelmente, que mandava passar a ferro untado com goma e
amassava cuidadosamente, antes de usar. Carregava num perfume forte, adocicado,
um tal de patchouli que incendiava os ambientes por onde passava e espantava
para longe quem tivesse enxaqueca. Meia légua antes de Canuto chegar já se recebia
a fragrância de sua vinda.
A inoperância
crônica do prefeito servia de chacota nas rodinhas de conversa de Matozinho. O
edil até já se acostumara com a esculhambação, havia, no entanto, um apelido
que ele odiava e, por mais de uma vez, andou puxando lambedeira e tomando
satisfação para quem o deixasse escapar:
--- Boi de João Martins !
O visitante
novo na vila teria súbita dificuldade em entender a origem daquele epíteto.
Seria por que o prefeito era chifrudo e pegava ar ? Quem diabos era o tal de
João Martins ? Era preciso ter um brevê de Matozinho para poder escarafunchar
aquela alcunha. Uma vez até pregaram uma peça num representante comercial recém
chegado e que queria participar das licitações da prefeitura. Ao perguntar o
nome do prefeito, algum gaiato disse chamar-se de João Martins. Na audiência, o
pobre rapaz, enganado, fazendo-se de íntimo, tentou explicar suas pretensões:
--- Pois seu
João Martins, sou representante de uma loja de material de construção da
capital...
Antes que
pudesse continuar a conversação, Nicolau o expulsou de pau pereiro na mão,
ameaçando-o cobrir na peia.
Pois bem,
Gumercindo Sobreira, sacristão que alterna o manejo de hóstias com umas mãos de pif-paf , foi quem desvendou o mistério.
João Martins fora o mais importante pecuarista da região. Morrera uns dez anos
atrás. Fora ele o responsável pela melhoria do plantel bovino em Matozinho.
Consta que uma vez, fora a uma importante Exposição Agropecuária na capital e
lá comprara um boi de raça, PO, indubrasil. Bicho famoso, pesava quase uma
tonelada, carregava um nome importante que encimava seu pedigree: Halfimaster Hollymister.
Martins pensava em melhorar a genética do seu plantel e, também, aluga-lo como
reprodutor, para outros pecuaristas da região. A chegada de Halfimaster fez-se
uma verdadeira apoteose na cidade , com direito a retreta da Banda de Música do
Maestro Arnóbio Carcará.
O nome
esdrúxulo e trava língua de Halfimaster Hollymister foi substituído rapidamente
pelo vaqueiro Chico Rabichola, por outro mais fácil e palatável: Chibatinha. Com
o passar dos dias, bateu o desespero no pecuarista. O boi não cobrira ainda
nenhuma vaca. Aproximava-se, rodeava as fêmeas, cheirava, cheirava, de venta
virada para o nascente, mas ação que é bom nada... O boi era como um apreciador
de vinho que cheira, bochecha, olha para o copo, mas beber que é bom,
nannanninnanã !
Quis saber de
Gumercindo qual a relação do boi com o prefeito Nicolau. Ele, então, me revelou
o segredo:
--- Hora, o
prefeito é do mesmo jeitinho do Boi de João Martins ! Encharcado de perfume, cheira
pra danar, mas produzir , que bom, não
produz é nada...
27/09/2019
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