sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Pouso de Emergência



                                               As perguntas saíram  de chofre, uma após a outra, com uma urgência urgentíssima, igualzinho uma chamada feita para o SAMU.
                                   --- Valfrido, você é meu amigo ?
                                   Mal o rapaz confirmou, seguiu-se uma outra interrogação, atropelando a primeira:
                                   --- Então, você jura que sustenta , como verdadeiro, tudo que eu disser ? Sustenta ? Sustenta ?
                                   Valfrido , disse que sim, claro, sem nem ter tempo de inquerir sobre a razão daquela série de súbitas indagações. Sentados na mesa de um bar de periferia, com a turminha de habitués, como acontecia quase a todo final de tarde, Aragão tinha a cadeira virada para a rua que se separava do bar por uma ampla vidraça.  O vidro acompanhava, em L, todo o ambiente. Virado para o inquiridor, de costas para o movimento da praça que se espreguiçava do outro lado da lâmina vítrea, Valfrido notou, tão-somente, um certo ar de susto, uma palidez momentânea e os olhos meio esbugalhados do companheiro,  como se acabasse de ver o Babau ou o Jaraguá em alguma encruzilhada.  Os quatro outros colegas, que compunham a mesa, sequer inferiram qualquer ar maior de anormalidade, mesmo porque ali estavam protegidos do bulício da rua e da corrida desenfreada dos carros e das pessoas do outro lado da vidraça do “Bar do Entroncamento”. Açodavam-se, de um lado para outro, buscando ganhar a vida, como diziam, enquanto a iam dissipando, pouco a pouco, no azáfama da busca.

                                    Na mesa, sentados, estavam Aragão e seus comparsas, todos já fora de competição: barnabés federais aposentados  do antigo INAMPS. Diziam que, como bons funcionários públicos, não haviam se desgastado muito: uma gota de suor de qualquer um deles curava câncer e até doenças priônicas.  Estavam ali quase todo final de tarde para rememorar os velhos tempos, com a sensação de que não existia futuro à frente, apenas um passado que precisava ser exumado frequentemente, para terem a certeza de que ainda estavam vivos. A única exceção à regra era Valfrido, o parceiro a quem Aragão se dirigira, misteriosamente, solicitando apoio incondicional. Ainda na ativa, gerente de um banco privado, ele se juntara à turma naqueles encontros de fim de expediente,  por mera afinidade,  como amante também do arremesso de conversa mole , do levantamento de copo  e da degustação de tira-gostos.
                                   Após a sequência  de inquirições , à queima roupa, como o disparo de uma arma automática, dois amigos  camaradas de Aragão que se encontravam, ao lado dele , na mesa, também vis-a-vis  à vidraça, perceberam um movimento  exacerbado e anormal na rua,  logo defronte ao bar. Só então, aos poucos, começaram a matar a charada. Duas mulheres se engalfinhavam dentro de um carro estacionado, trocavam tapas e unhadas como tigresas. Passados alguns minutos conseguiram identificar as combatentes e entender o prenúncio do Tsunami.
                                   Aragão havia estacionado seu indefectível   Opala Diplomata 98 , a quem tratava como uma relíquia, uma espécie de Santo Graal do automobilismo, diante do bar. Deixara lá dentro, no aguardo, com a paciência toda desse mundo, uma amásia  de que todos tinham ciência, há mais de dez anos: Damares.   D. Argemira, a esposa oficial de Aragão, já tinha ouvido um zum-zum-zum reiterado dos salta-cercas do marido. Abrira inquérito, fizera perquirições, tentara arrolar testemunhas, mas nunca conseguiu as provas que o incriminassem, definitivamente. Pensou até em procurar um arremedo de juiz de Curitiba, expert em condenar pessoas sem provas. De qualquer maneira, Aragão vivia há muito tempo pisando em ovos, sob eterna vigilância da perdigueira de casa e das fofoqueiras de plantão.
                                    Pois naquele dia, azar dos azares, o satanás atentou e fez com que Argemira saísse de casa, em busca de uma farmácia para comprar a medicação do pai.  Resolve passar , com seu sexto sentido córnico,  justo pela Praça do Entroncamento, dando de cara com o Opala famoso do marido  e D. Dadá toda aboletada lá dentro, esperando o amante. Estacionou, partiu para cima e passou, sem maiores perguntas, a agredir desesperadamente a pobre da Damares. Foi esta cena tenebrosa que Aragão observou através da vidraça e que o fez proferir as perguntas em cascata ao amigo Valfrido , só depois chegando ao conhecimento dos companheiros de bebedeira que observavam, também, o  rebuliço da rua.
                                   O desdobrar da cena foi previsível até certo ponto. Dadá , cheia de sopapos, correu e escapou como um bólido pelas ruas mais próximas. Parecia  um gato siamês que encontra  mastim napolitano. Terminada a perseguição, Argemira invade o bar, valente como uma jararaca na TPM. Dirige-se à mesa sacrossanta de Aragão e seus amigos, e, aos berros, passa-lhe uma descasca, uma catilinária cheia de impropérios e nomes cabeludos: Safado, sacana, nojento, filho dessa , filho daquela...
                                   Sentados, os amigos temerosos, pareciam , aflitos, como se estivessem num avião,   em meio à turbulência já em posição de pouso de emergência. Por incrível que possa parecer,  apenas Aragão parecia sereno e tranquilo em meio aos insultos e  às invectivas furibundas da patroa. Mantinha até um certo ar de revolta , como se estivesse sendo injustiçado, sofrendo , publicamente,  um esculacho totalmente vil e imerecido. Não havendo o estabelecimento do contraditório, por parte do acusado, depois de uns quinze minutos, Argemira irada, dissolveu-se num choro convulso. Aragão cabeça baixa, pronunciou, então, suas primeiras palavras:
                                   --- Estou decepcionado com você, Argemira ! Nunca imaginei que seria capaz de uma loucura dessas! Vive-se trinta anos com uma pessoa ! Já vi ! Não se conhece ninguém nesse mundo !
                                   Argemira, ante uma defesa tão vagabunda, recobrou a ira, engoliu o choro e partiu pra cima:
                                   --- Decepcionado ? Decepcionado, seu malaca ? Como você explica tá carregando aquela quenga no seu carro ?
                                   Aragão, então, desapontado, explicou o tamanho da tragédia:
                                   --- Sua louca, eu tinha vendido meu carro hoje pela manhã ao Valfrido. Vim pra cá de táxi. Aquela mulher que você agrediu violentamente no carro era a esposa dele. Que vergonha, meu Deus ! Nunca imaginei, na minha vida, passar por uma situação vexaminosa dessas !
                                   Argemira, não acreditou naquela versão que lhe pareceu fantasiosa. Mesmo assim, virou-se para Valfrido e perguntou-lhe se aquilo era verdade. O amigo tinha-se comprometido com Aragão e, olhos lacrimejantes,  não titubeou:
                                   --- Comprei o carro, sim, D. Argemira ! Aquela que estava lá dentro era Miosótis, minha esposa ! Nem sei onde ela estará agora que saiu desesperada correndo e apanhada !
                                   Argemira, diante da resposta, empalideceu. Ajoelhou-se nos pés de Valfrido e lhe pediu perdão. O homem, com cara de desapontamento, respondeu-lhe que por ele, tudo bem, mas se bem conhecia Miosótis, achava que nunca mais na vida era iria querer topar com ela. Tinha sido muito humilhante aquela cena.
                                   Aragão tomou a mulher pelo braço, com cara de raiva, pediu desculpa à turma e  saíram do bar em busca de um táxi. Já na calçada, pediu que esperasse um pouco, pois ia, novamente, se desculpar com o amigo. Aproximou-se e sorrateiramente colocou a chave do Opala 98 em cima da mesa e lhe sussurrou:
                                   --- Valfrido, vende o carro por aí ! Te vira ! Depois a gente se acerta !

Crato, 09/08/19

Nenhum comentário: