A mocinha do Ministério da Saúde me
mandou, pela manhã, a cópia do Diário
Oficial com a portaria da minha aposentadoria. Tinha solicitado já há uns oito
meses. Vinha trabalhando no antigo SAMDU aqui do Crato desde os anos oitenta. Protelara
um pouco o pedido até perceber , que pelos novos caminhos trabalhistas, só
conseguiria pendurar as chuteiras daqui a uma três encarnações. Diante da
fotinha da portaria assaltaram-me duas sensações díspares e antagônicas: uma de
alegria e de um certo alívio depois de tantos e tantos anos no batente e, do
outro lado da esquina, um certo abatimento, um blues, uma capionguice. Serei
agora apenas um objeto de decoração da casa, um animador de neto, o velho da cadeira
do papai e do pijama de bolinha ? Lembrei-me, imediatamente, de uma história da minha infância. O Padre
Vieira, quando pároco de Icó, criava um macaco e um dia resolveu dar um picolé
ao bichinho. O símio de posse da iguaria gelada corria toda a jaula, alternando
o picolé de uma mão para a outra, enquanto o chupava. Grunhia como um louco,
mas não soltava de jeito nenhum a pedra de gelo adocicada. Cá estava eu igualzinho
ao macaquinho do padre: nem aguentava a frieza nas mãos, nem queria soltar o
picolé.
Depois de
mais de quarenta anos no ofício,
contabilizando sucessos e insucessos, sinto-me, sinceramente, um privilegiado.
Terminada minha formação, quis voltar para a terra que me fez ver a luz. Aqui me firmei,
exerço desde então meu ofício diuturnamente, dentro das limitações intelectuais
que a natureza me proporcionou. Nunca quis ser um médico fiota, cheio de
riquififes e quipropós , oferecendo minha arte apenas ao segmento mais rico da
população. Trabalhei nos postos de saúde
do estado , do município e do Ministério da Saúde. Fui plantonista em hospitais
por mais de três décadas, diretor hospitalar e gestor de cooperativa médica. Fiz,
também, ativamente, política de saúde, como membro do Conselho Regional de
Medicina, do Centro Médico Cearense e do Conselho Regional de Medicina e,
ainda, fiz-me conselheiro municipal de saúde por mais de quinze anos. Aprendi
com Foucauld que a primeira tarefa do médico é política e que a luta contra a
doença deve começar pelo combate incessante aos maus governantes. Tornei-me
especialista em atividades sem remuneração. Percebo que as chuteiras já estão gastas pela
intensidade do jogo, mas causa uma certa angústia o simples movimento de levá-las
até ao armador.
No fundo,
bate-me na alma a sensação de uma página
de livro que virou, para um capítulo futuro de que não se sabe o script ou sabe-se e, por isso mesmo, se teme. Como se , de
repente, fôssemos atirados a um canto do quintal como uma garrafa pet vazia ou
uma quenga de coco. Sabemos que
dificilmente médico se aposenta, só quando o destino resolve transformá-lo em
mero e exclusivo paciente. Mais de 70%
dos profissionais com mais de sessenta
anos estão em plena atividade no Brasil.
Fechadas
algumas portas , abro algumas goteiras no meu telhado para , sol a pino,
entrarem algumas réstias pela casa. Continuarei na profissão até quando o
bisturi continuar afiado e os desígnios da natureza me permitirem. Vou driblando
os cacos de vidro e quebra-pés que a vida espalhou ao longo do caminho. Terei
mais tempo para escrever e para ler, dizem os amigos, mas sei, perfeitamente,
que é o contato com as pessoas no consultório e na rua que alimenta minha pena
e minha sensibilidade. No fundo, sou um mero médico de aldeia, um discípulo desgarrado
de Hipócrates e de Paré . Sempre acreditei que tudo que fazemos, mais que mera
e fria ciência, tem os mistérios e os encantamentos da arte
do pajé, do jesuíta e do feiticeiro. O Raio X, o estetoscópio, o tensiômetro
são simples acólitos no nosso trabalho de ilusionismo. A magia está no toque,
no encontro de uma alma com outra alma. Espero, assim, que minhas chuteiras abandonadas , cobertas
pelo limo dos dias, terminem por deixar florescer algumas flores outonais.
Barco no mar,
arreio um pouco as velas para os tempos de tormenta. Um dia, em meio à névoa, virá o iceberg, mas tudo terá valido a pena :
pelos companheiros de viagem, pela
travessia sinuosa, pelo bailado da piracema, pelo verde esperançoso das águas, pelo
esplendor dos crepúsculos e dos arrebóis.
Crato, 31 de Julho de 2019
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