Não foi uma medida
intempestiva, dessas tomadas sem ruminação, sem a demora necessária para que os
escolhos terminassem por se decantar no fundo do copo do ressentimento. Maria
José foi empurrando a pesada carroça da amargura pelas vielas tortuosas da
existência, até que o peso da carga lhe pareceu grande demais para seguir em
frente. O casamento já transpusera as
esperáveis crises de quatro décadas e, o mais interessante: nem tinha muito de
que se queixar. Clenildo , o esposo, mostrou-se sempre uma pessoa sem muitas
ambições. Dependurara-se num cargo
público de uma das secretarias do estado e ,
de pequena em pequena promoção, chegara à aposentadoria. Recebia uns
proventozinhos mixurucas mas que eram suficientes para manter a vida simples de
classe média de primeiro degrau. Maza , como o marido carinhosamente chamava,
administrava a empresa doméstica do casal, praticamente sozinha, sem ajuda de
mais funcionários. Os três filhos já taludos tinham casado e haviam escapado
cedo para as bandas do sul do país e lá, seguindo a sina cigana de nordestinos,
viviam como pequenos comerciantes, vendendo bugigangas em feiras ambulantes de cidades interioranas,
uma vila a cada dia da semana.
A
vida de Cenildo, assim, corria mais para as planícies, sem maiores relevos, sem
vales e depressões que lhes trouxessem solavancos. Tirante um porre eventual em
alguma festa do ano, uma ou outro salto de cerca durante o percurso no corredor
dos anos, Maza pouco tinha do que se queixar do marido. Talvez tenha sido o
desgaste natural do relacionamento pelo atrito inexorável dos dias; aquela
sensação de que o amor comburente dos primeiros anos tenha consumido todo o
combustível e que agora parecia
insuportável conviver com as cinzas e o restinho de carvão que restaram depois
da noite de São João. A proximidade de Cenildo, de alguma maneira, passou a incomodá-la, seus roncos, seus aromas
interiores quando ia ao banheiro. Aquelas pelancas, aquelas rugas, aquela luta
para o motor de arranque pegar no tranco... Não tinha sido aquele o homem com
quem casara apaixonadamente e a quem entregara ardentemente seu corpo na
pujança da juventude! Além de tudo, já perdera a capacidade de inflamar-se como
antigamente, o tempo umedecera a madeira do seu tesão, os carinhos
necessariamente desdobrados traziam consigo um tanto de enfado, como um
funcionário que batesse o ponto pelo simples temor de ser despedido pelo
patrão. Maza , em meio ao tédio e à obrigatoriedade do rito, via-se quase como
uma adúltera.
A decisão dela , assim, não foi intempestiva. Nasceu,
naturalmente, do velório interminável do seu relacionamento que morrera, sem
sobressaltos, sem acidentes, por mero decurso de prazo. Restara a amizade, a
habitualidade, o cuidado , o desvelo, como as batatas que pusera um dia debaixo
da fogueira de São João para degustar no outro dia, depois de exumá-las por
entre as cinzas. Era gostoso, era doce, mas já não se tratava mais de fogueira.
Calmamente, começou a transferir suas coisas para o quarto vizinho do casal. Um
peça a cada dia: um vestido, uma calcinha, um sapato, a maquiagem... até que
depois de uns dois meses a mudança estava completada. Cenildo só compreendeu tudo depois do fato
consumado. De repente, viu-se só no quarto do casal, meio solitário, mas,
também, mais folgado, com mais espaço, nem reclamou. Se ela quer assim, que
assim seja, pensou com seus botões.
O
passar dos dias, no entanto, os tornou mais distantes. Um já não esperava por
outro nas refeições. Conversavam pouco e apenas o estritamente necessário. As
palavras eventuais e monossilábicas iam sendo substituídas por uma
gestualística, uma espécie de Linguagem de Libras própria. Cada um sentiu-se imigrante dentro de sua própria
casa. O incômodo da presença física de Cenildo, com suas idiossincrasias,
substituiu-se pela solidão que ia aumentando, sem cessar, como clara de ovo
chacoalhada no cântaro de ágata. Maza, a protagonista da diáspora, entendeu que
a troca não se fizera proveitosa. Procurou o marido, pela primeira vez em
muitos meses, conversaram antes que perdessem, definitivamente, esta
capacidade. Negociaram uma alternativa. As tralhas de cada um permaneceriam em
locais separados, mas os dois voltariam a dormir juntos no quarto do meio, uma
espécie de Faixa de Gaza. Sabiam que ali se travariam, mais uma vez, as
batalhas mais selvagens, os arrufos , os impropérios mais cabeludos, mas que
também haveria a volta das primícias dos toques, dos carinhos, da mistura de
fluidos e de aromas, de tudo aquilo que, enfim, é construído o tosco edifício
da humanidade. A luz, ainda que bruxuleante, voltou a piscar na Faixa de Maza.
Crato,
19/01/19
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