sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Dom Pompom e o Velho Testamento

                                           Pompílio Evangelista de Mendonça carregava, junto ao nome pomposo, uma personalidade não menos respeitável. Atarracado, corpulento, voz de barítono, falava pausadamente como um bluesman. Nunca se o viu alterado, levantando a voz, discutindo ou tentando ganhar embates com sua retórica. De gestos largos, abraçava longamente a todos que o procuravam, com uma lhaneza de trato difícil de se encontrar naqueles confins de Matozinho. Extremamente bondoso, caritativo e solícito, nosso amigo atendia com muita presteza a tantos que o procurassem.  Dir-se-ia falar-se com um bispo ou um cardeal quando se procurava Evangelista, talvez, por isso mesmo todos o conhecessem por Dom  Pompom.  
 
                                   Pompílio chegara em Matozinho há uns vinte anos e vivia tocando uma fazendola onde criava gado, bodes e carneiros. Morara em várias cidades , anteriormente, e comentava-se, a boca miúda e com cuidados redobrados,  que o passado do nosso bispo popular contradizia sua postura tão fina e recatada. Balbuciava-se, aqui e ali, que fora pistoleiro de aluguel dos mais afamados e que atrás daquela figura delicada e afável escondia-se uma cascavel de doze guizos.  Isso , de falar por falar, saltava, algumas vezes de algumas línguas bífidas da Vila. Para a mor parte dos matozenses, no entanto, estas questiúnculas nem interessavam, até porque todos gostavam da figura honrada  do velho Evangelista. Apesar da divulgada folha corrida de Pompom, as pessoas o amavam mais por reconhecimento que por temor.
                                   Sabia-se por ali que a família de Pompílio era um verdadeiro clã. Tinha parentes e aderentes espalhados por todo o estado e que se ajudavam mutuamente. Mexer com qualquer um deles, ofender alguma filha dos Mendonça era cutucar nu uma caixa de marimbondo de chapéu. De repente, sem que ao menos se esperasse, lá vinha uma bala perdida, um carro desgovernado, uma pedra rolando da ribanceira: tum ! No dia do velório lá estava nosso Dom Pompom, cabisbaixo, choroso, cumprimentando todos os familiares e se pondo à disposição para desvendar o crime ou acidente tão pavoroso.
                                   Contava-se dele, um caso exemplar. Soledade, a sua primogênita , casou com Pergentino, um sujeitinho meio boêmio, chegado a um carteado e a um violão. O pai nem queria o casamento, torceu o nariz, mas Soledade fincou pé e não teve como retroceder. Entrado na família, ele passou , imediatamente, a gozar da imunidade diplomática dos Mendonça.  Casava e batizava, seguro de que tinha guarda-costas. Pergentino chegava bêbado em casa e gostava de bater na esposa. Pompom soube das lapadas frequentes, mas não se meteu : ela é que tinha escolhido aquele caminho. O problema é que um dia, a surra foi tamanha que Soledade procurou o pai , em prantos, com a cara inchada e o braço quebrado : não aguentava mais tanta peia. Dom Pompom ouviu-a calmamente e informou que sabia de tudo mas não quisera meter a colher de pau naquele angu de caroço. Agora, que ela o procurara, sim, prometeu resolver a questão. Consta dos anais de Matozinho que nosso bispo contratou um pistoleiro e pediu que resolvesse a questão. Acertou o preço: R$ 2000,00. Deu-lhe a metade e combinou hora e local, para depois da consumação do fato, se encontrarem para o restante do pagamento. Dito e feito. Pergentino estava todo serelepe no Bar do Giba, de violão em punho, entoando “A Deusa da minha rua”, quando um sujeito entrou tranquilamente no bar, disparou um único tiro a queima roupa, no cocuruto de Pergentino,  e saiu como se nada tivesse acontecido. Soledade quase enlouquece, nunca imaginara que o tratamento seria tão radical, mas calou o bico. Dom Pompom, então, procurou a polícia e , visivelmente abalado, disse-lhes que tinha informações de onde estava o assassino. Prometeu-lhes , então, uma gratificação de quinhentos reais, sob uma condição: não queria que o atirador escapasse. A polícia concordou. Pompom, então, deu o local e a hora exatos que havia combinado com o pistoleiro para o recebimento da outra metade. A polícia já chegou atirando: o homem havia resistido à prisão.
                                   Sulpício Mendonça, filho mais novo de Pompílio, sempre foi chegado aos livros. Estudou com afinco e terminou se formando em advocacia. Daí para juiz foi um pulo. Assumiu em Bertioga.  Sulpício sabia  do passado  paterno, mas sempre o respeitou, embora admitisse, para si mesmo, que a profissão que escolhera , certamente, era uma espécie de contraponto ao obscurantismo contravencional da família. Quisera trazer algum ar de legalidade à família.  Dr. Sulpício fez carreira meteórica por ali. Brevemente se esperava uma promoção : ele deveria assumir uma Vara importante na capital.
                                   Um belo dia, Dr. Sulpício participou do julgamento de uma facínora que havia assassinado as próprias  esposa e a filha. Acabado o júri , o réu pegou vinte e cinco anos de xilindró. Ao ouvir a sentença, revoltado,  ele ameaçou:
                                   --- Doutor, reze para eu passar muito tempo no xadrez, viu ? Quando eu sair, o senhor vai me pagar. Se eu matei até a minha , que dirá a sua ! Acabo com você e sua família, seu miserável !
                                   Sulpício já estava acostumado com ameaças, de maneira que nem levou muito em conta o desabafo do assassino. Ficou , no entanto, mais  encafifado que aliviado quando, três dias depois, soube que o sentenciado tinha sido morto na cela, com mais de cinquenta perfurações de cossoco. Desconfiou que Dom Pompom poderia estar por trás daquela solução tão radical. Procurou o pai e sondou-o. O velho, pausadamente, informou que tinha mexido os pauzinhos e resolvido a pendência. Sulpício agitou-se:
                                   --- Papai, não acredito ! Não precisava esta loucura! Eu sou a justiça ! Não estamos mais nos tempos das cavernas ! Meu Deus !
                                   --- Meu filho, mas aí,  já não estava mais na sua jurisdição!
                                   --- Como não, papai ! Eu sou juiz! Lembra ?
                                   Dom Pompom, então, mostrou as rígidas regras do seu  velho testamento:

                                   ---- Meu filho, você é formado em Letras ! Eu é que sou formado em Tretas, viu ?

08/08/14

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