quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Texto do Prof. Batista de Lima sobre "A Delicada Trama do Labirinto"

Batista de Lima

caderno3@diariodonordeste.com.br
24.09.2013


O Crato de J. Flávio

Os limites entre o conto e a crônica, muitas vezes, são tão tênues que os leitores os confundem. Essa confusão, entretanto, começa quase sempre com o autor ao colocar na ficha catalográfica o gênero a que se reporta o livro. Talvez a solução fosse criar-se um gênero intermediário que se chamaria "concrônica". Entretanto isso se torna irrelevante quando o leitor, em vez de estar à busca de rótulos, procura outros valores subjacentes das narrativas.

Essa observação vem a propósito do mais recente livro de J. Flávio Vieira. "A delicada trama do labirinto" é seu título, e na ficha catalográfica consta ser um livro de contos. Acontece que o leitor observa que, a partir do primeiro texto, há uma intercalação entre contos e crônicas. São narrativas bem urdidas que dispensam qualquer rótulo. O que importa é o envolvimento do leitor em labirintos urdidos, feitos teias de aracnídeos a partir da capa perfeitamente elaborada e representativa do conteúdo do livro, surgida da inteligência de Reginaldo Farias. A capa é uma iluminura que já apresenta na estrutura de superfície do livro, os contornos de seu interior.

As narrativas, e são muitas a se apresentarem em 240 páginas, trazem os mais diversificados cenários. Logo na página 41 encontramos "O ovo do sonho", que lança autor e leitor pelos caminhos do retorno a um paraíso perdido. J. Flávio, remanescente da juventude dos anos dourados, nos transporta para uma tertúlia em que se apresentam The Fevers, Os Pholhas e os Golden Boys. Mesmo sendo nos dias atuais, nessa tentativa do retorno, toda a indumentária daqueles anos é retirada do baú. "A velha calça Lee, boca de sino; o empoeirado sapato cavalo de aço; a camisa volta ao mundo e o negro blusão de couro". Depois ainda existe o "Topázio", da Avon, e a Brilhantina Glostora. Isso é apenas a preparação para a tertúlia, em que o Rum com Coca-Cola e Mariazinha de saia plissada lhe esperam.

Dos cenários que vão se construindo ao longo do livro, o Crato é o mais constante. Afinal, mesmo tendo cursado Medicina, em Recife, foi nessa cidade caririense em que J. Flávio Vieira veio ao mundo em 1952, e passou infância e adolescência, estudou, e hoje clinica. Seus verdes anos foram de formação cultural caririense com a presença dos muitos mitos e outros ícones culturais que marcam o sul cearense. Ali no Crato, frequentou os cinemas Moderno, Cassino e Educadora. Dançou no Crato Tênis Clube, AABB e Itaitera; flertou na praça Siqueira Campos; banhou-se nas inúmeras nascentes do pé da Serra do Araripe; sujou-se daquela cultura mística e mítica que impregna as almas como a tiborna dos engenhos do vale canavieiro.

Dr. José Flávio Vieira possui a dimensão do efêmero que se apodera da existência humana desde o nascedouro da criatura. Por isso se apega à memória, como a única forma de iludir-se de que está sustentando o tempo pelo cabresto para evitar esse puir que ele impõe à vida. Suas narrativas imprimem um retorno, mesmo que nessa arqueologia haja um esquife sendo velado na sala de uma casinhola como culminância de sua escavação, "pingos ácidos de nada, corroendo o tecido já puído do devir". O autor consciente da fragilidade do ser, e de forma existencial, não poupa o leitor das agruras do efêmero. Ler seus textos é compartilhar de uma angústia memorial que só os cônscios da pequenez humana são possuidores sapientes.

Montado nessas sabenças dos livros e nas experiências no contato com o povão com quem lida, por 15 anos foi juntando causos, crônicas e contos até parir essa bela obra que vem apadrinhada pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará. Como afirma nas primeiras páginas, esse livro tem sua urdidura montada sobre "três principais monogramas. O primeiro, trançado com os diáfanos fios da poesia; o intermediário, bordado com a emaranhada e irregular seda da ficção; o último, por fim, tecido com a sinuosa e delicada linha da reflexão". É uma coletânea de textos desafiadores do poder corrosivo do tempo, mesmo conscientes da impotência de sustentação dessa lida, daí seu persistente trabalho de desconstrução.

O escritor J. Flávio Vieira é um bom contista mas melhor ainda é cronista. O seu conto "Lã", que abre essa coletânea é antológico. A simbologia da velhinha fiando nos remete a um turbilhão de imagens que vão da tecedera Penélope aos teares da nossa infância, urdindo uma tecitura que pode ser o texto, a esperança, a vida ou o suportar da existência. Acontece que logo em seguida vicejam belas crônicas como "Avô avoado", "Fênix", "Peru de Natal" e "Uma mera notícia de jornal". O bom de suas crônicas é que vez por outra aparece o Crato como cenário de seus escritos.

É nas crônicas em que o Crato mostra a cara. J. Flávio na sua arqueologia resgata personagens populares ameaçadas de se afogarem no ostracismo. São pessoas do povo que por um detalhe a mais fugiram do senso comum do cidadão tradicional da cidade. São homossexuais, boêmios, madames de lupanares, malandros e chapeados que marcaram época por quebrarem as convenções de uma sociedade marcada pela preservação das tradições religiosas com lances de aristocracia. São também ícones e equipamentos culturais de uma cidade que mudou para pior ao longo dos anos, desgastando um romantismo cuja culminância ocorreu nos famosos anos dourados. Esse sensível escritor reconstrói esse paraíso devastado no seu retorno nostálgico. Daí ele permitir ao leitor transformar o texto Crato em um teto onde lateja, pulsa e sangra um paraíso perdido.

Nenhum comentário: