J. Flávio Vieira
Cada retorno
de Zé , assim, inundava a vila de alegria, comemorava-se o feito de um herói,
como se ele houvesse escalado o Everest ou pisado pela primeira vez no Pólo Sul,
como Amundsen. Por outro lado, Felipe vinha também como um Marco Pólo, trazendo
notícias e histórias de terras distantes e quinquilharias para vender ao povo
de Matozinho: últimas novidades da civilização.
Quando o velho caminhão Mercedes apontava na descida da Serra da Jurumenha, a
vilazinha exultava. Junto de Zé , seu eterno ajudante : Tico Biroba. Eles faziam
uma dupla perfeita: D. Quixote e Sancho Pança da Caatinga. As histórias de
Felipe ainda hoje inundam o imaginário de Matozinho, tantos anos depois, pelo
inusitado, pelo humorístico, pelo doce tom de irreverência.
Cada
curva da estrada escondia perigos insondáveis. Felipe computava inúmeros
acidentes na profissão. O maior deles , no início dos anos cinqüenta, uma
capotagem terrível nas montanhas das Minas Gerais, quase dá cabo dele e de
Biroba. Escaparam, mas o caminhão
destruiu-se, em tempos em que seguro de carro inexistia. Zé ficou com uma mão no cano e
outra no feixe, triste e desiludido pelos cantos. Escreveu então a Getúlio
Vargas, então presidente, contando o infortúnio por que passava, agora,
inclusive, sem mais ter como sustentar a família. Dias depois recebeu, por
incrível que possa parecer, uma resposta do Catete. O presidente lhe ofertava
um outro caminhão para que continuasse a vida nômade. Felipe recebeu-o no Rio
de Janeiro e escreveu no pára-choque uma
frase que demonstrava toda sua gratidão
: “Esse foi Getúlio quem deu !”
Varando
as tortuosas estradas do Brasil, por
tantos e tantos anos, Felipe conhecia cada buraco. Familiarizara-se com
mecânicos, borracheiros, bodegueiros, motoristas por tudo quanto é de biboca
desse país. Bom papo, cheio de presepadas, conheciam-no nos lugares mais ermos,
como se fora uma reencarnação de Pedro Malasartes. Suas peripécias corriam de língua em língua e
até foram , um dia, imortalizadas em um cordel atribuído ao poeta Pedro Pito. Foi do cordel esgotado de
Pito que arrancamos algumas dessas histórias que deixamos registradas aqui, na esperança
que este texto tenha mais durabilidade que as páginas já puídas do nosso poeta
maior.
Numa
das suas raras permanências em Matozinho, Felipe encontrou, um dia, na feira,
com Mané Mago, um varapau que morava nas terras do Cel Anfrízio, homem sério
como fundo de touro e de pouca conversa. Mané passara uma época em São Paulo e,
não encontrando o El Dorado, retornara a sua vila, com o rabinho entre as
pernas. Trouxera, junto com ele, aquela indumentária própria para o inverno paulista
e não a dispensava , mesmo no sol mais escaldante de outubro. O adereço mais
chamativo era um chapelão enorme que mais parecia uma sombrinha. Foi com essa
arrumação que Zé Felipe deu com ele, no pino do meio dia, na feira.
Cumprimentou-o, cordialmente, mas não perdoou :
---
Zé, meu amigo ! Onde é que você vai montar esse carrossel ?
Zé,
enfezado, saltou com quatro pedras na mão :
---
No cu da mãe, Felipe ! No cu da mãe !
Felipe
não se enrolou :
---
Bacana, Mané ! Só assim eu rodo de graça !
Em
uma das suas incontáveis viagens, no inverno, o caminhão atolou feio lá pras bandas da
Paraíba. Alguns lavradores ,que limpavam
uma roça próxima, reconheceram o motorista e vieram ajudá-lo. Calça daqui, cava
dali, empurra dacolá , depois de umas duas horas, conseguiram, por fim,
desatolar o veículo. Estavam todos exaustos e calabreados como se trabalhassem
em Serra Pelada. Os lavradores eram todos de uma mesma família, residente ali
próximo. Todos atarracados e com uma característica interessante, pescoço
curtíssimo, como se a cabeça saísse diretamente dos ombros. Já no carro e
acelerando, Zé perguntou-lhes quanto devia. Eles, solícitos, disseram que não
era nada, enquanto já retornavam meladíssimos ao trabalho da roça. Saindo, Zé
Felipe gritou :
---
Obrigado, amigos ! Quando eu voltar de Campina Grande vou trazer um par de
pescoço pra cada um de vocês !
Teve
que acelerar rápido, pois o palavrão e a pedrada comeram no centro !
De
uma outra feita, no interior da Bahia, próximo a Jequié, em plena zona rural,
algumas pessoas atravessaram na estrada , pedindo socorro. Zé Felipe freou. Uma
mulher contou então que o pai estava muito doente e pedia ajuda para levá-lo,
no caminhão improvisado de ambulância, até a cidade. O motorista mostrou-se solícito, mas pediu
para examinar primeiro o paciente, pois se dizia experiente, já fora
meizinheiro na feira de Matozinho e, quem sabe, poderia ajudar. Levaram-no até
uma casinha de taipa e lá, em um dos quartos, encontrava-se um senhor gordo, com uma barriga enorme e feio como o
diabo com convulsão. Disse que estava sem desistir há mais de uma semana e não
soltava um vento nem pelo amor de Deus. Zé o examinou, rapidamente e selou o
diagnóstico :
---
Minha senhora, não é nada demais! É só um peido ariado. O cabra é feio demais e
o peido fica zanzando pra cima e pra baixo : não sabe se o cu é em cima ou embaixo !
Já
velho, Zé Felipe, ainda em atividade, caiu doente. Pressentiu que a velha da
foiçona arrodeava sua casa. Chamou Tico Biroba, o companheiro de toda uma vida
e pediu-lhe que passasse com o velho Mercedes diante da sua casa e desse um
apitão daqueles de ecoar na pradaria. Biroba, com os olhos lacrimejando,
realizou o desejo do chefe e foi montado naquela buzina que Zé Felipe empreendeu sua última viagem ,
desta vez por uma estrada escura e totalmente desconhecida.
18/07/13
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