Defronte do Copacabana Palace, no Rio, no domingo dia vinte e dois de maio, uma multidão olhava para a janela da suíte presidencial, quase a quebrar o pescoço, esperando pelo aparecimento, por um mínimo instante que fosse, do seu ídolo. A turba formava-se por muitas gerações : bisavôs, avôs, filhos, netos. Uma senhora, passando pelo calçadão, arrastando seu poodle estranhou aquela atitude. “Um bando de gente desse, olhando para cima, como bestas, esperando o quê? Outro besta aparecer lá em cima?” Um rapazinho de uns vinte e poucos anos, fita-a seriamente e diz:
--- Minha , senhora! O que é isso? Respeite a religião dos outros! Se a senhora soubesse que Jesus estava hospedado aqui, não estaria ajoelhada neste calçamento? Pois ali em cima se encontra meu deus! Respeite a minha religião!
Pertinho, um outro rapazinho conversa com amigos e informa que não vai dar mais para esperar. Tem que ir para o Engenhão, render alguns amigos que estão na fila e precisam almoçar. E diz: “Estamos acampados lá desde quarta-feira, queremos ficar pertinho de Paul!”. À noite, no estádio, uma fila quilométrica aguardava a abertura dos portões. Pessoas de todas as idades estavam prontas a suportar mais de nove horas em pé, deslumbradas e anestesiadas com possibilidade de, após a maratona, estarem pertos, num show inesquecível, de São Paul McCartney de Liverpool. Avós, filhos, netos, das mais variadas regiões do país – umas quatro gerações --- ali estavam firmes e fortes. Alguns já tendo feito igual peregrinação nos shows anteriores de São Paulo, Porto Alegre e Buenos Aires. À nossa frente, uma senhora testemunha dos dourados anos sessenta, nos disse ter comprado ingressos para vir ao show daquele domingo e da segunda-feira. Passadas as longas seis horas aguardando o ídolo, uma platéia aparentemente estafada simplesmente ressuscitou quando Sir Paul apareceu no palco, com sua banda competentíssima e, sem muitas pirotecnias, sustentou um inesquecível Show de três horas. É que todos, totalmente reconfortados, assistiam à sua frente um show não de Paul mas do “The Beatles”.
Em pleno Império do Efêmero , pus-me a pensar: o que dá a uma obra tintas de eternidade? Ali estavam quatro gerações comigo, não de apreciadores da Banda, mas de Beatlomaníacos! Como aquilo era possível, se a primeira e mais primal atitude dos jovens é jogar no lixo tudo o que a geração anterior apreciou? Em plena era do Forró de Plástico, do Breganejo, do Axé Insosso, onde o sucesso dura no máximo alguns dias e as bandas nascem e morrem numa velocidade estonteante, como explicar a perenidade e a blindagem dos Beatles?
Queóps construiu sua pirâmide dois milênios e meio antes de Cristo.O faraó ergueu sua tumba gigantesca esperando ali ficar aguardando a ressurreição, ou seja moveu-o a busca da imortalidade. No fundo, toda obra de arte é uma nova pirâmide feita pelo artista, na quase sempre inglória tentativa de com ela driblar a morte e o esquecimento.A possibilidade quase que única de sobrevivermos de alguma maneira ao desaparecimento físico inexorável. A música que se faz hoje, quase sempre, na sua volatilidade, nada tem de ritualística e nem pode pretender ser arrolada como Arte. São casas de adobe, sem alicerce, para o pouso temporário e incerto de alguns. Feitas para o entretenimento daquele instante, daquele momento específico, rui como por encanto à primeira neblina. Sequer os bordões permanecem: “minha eguinha pocotó”, “minha mulher não deixa não”, “Ah, eu tô maluco!”
As tintas da eternidade são perseguidas por todos os artistas e, no fundo, é o moto-contínuo do seu fazer artístico. Mas não basta querer a permanência simplesmente. Nem mesmo a qualidade inequívoca da obra reconhecida hoje lhe dá, a certeza da permanência. Alexandre Dumas foi o mais reconhecido escritor da sua geração, assim como Anatole France e, nem por isso, a vivacidade das suas obras resistiram totalmente ao impacto do tempo. Balzac e Baudelaire, bem menos incensados enquanto viveram, criaram uma vitalidade impressionante com o passar dos anos. Além da qualidade temporal imprescindível da obra de arte, essa necessita de alguns outros atributos para as banharem de eternidade. Faz-se mister genialidade. O grande artista é sempre um visionário e consegue imprimir um profundo ar de atemporalidade naquilo que faz. Tantas e tantas vezes passa totalmente despercebido por seus contemporâneos, simplesmente porque pinta na tela do hoje utilizando as tintas do futuro.
Se a impermanência é o atributo mais palpável do reino animal, rescendeu um ar de eternidade , de divino quando Paul subiu ao palco do Engenhão no domingo. Como se todos estivessem diante da pirâmide e de lá saísse um Queóps redivivo dizendo Hello! e nunca, nunca mais, Good Bye!
27/05/11
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