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Uma comunidade não existe sem sua mitologia. É ela quem dá a cola necessária para manter a união da tribo, para lastrear seu passado. O “Fogo do Sabugo” fazia-se as Termópilas de Matozinho. Lembravam de seus heróis todos os dias: O Coronel Serapião Candeia que comandara a resistência - o Leônidas tupiniquim-- e “Zeca do Ané de Couro”, um feitor de sela e arreios que matara “Suvela” e “Currupio”, numa luta corpo a corpo, mas terminara morto por “Corisco”. Estes personagens , ícones de Matozinho, incensavam-se como deuses da braveza do seu povo. Contava-se ainda a versão que , depois daquela derrota frente aos matozenses, Lampião e o Bando saíram de crista baixa e, por isso mesmo, terminaram tendo a lamparina apagada, logo depois, em Angicos. A valentia de Matozinho contribuíra , assim, decisivamente, para o fim do ciclo do cangaço no Nordeste. Pouco importava que a história escrita simplesmente ignorasse aqueles feitos e nem sequer mencionasse os nomes de Suvela e Currupio, os mitos se movem e voam independentemente da nossa vontade, fazem parte de uma outra dimensão da nossa vida , a interface onírica.
Com o passar dos anos, os últimos remanescentes do “Fogo do Sabugo” foram pouco a pouco sendo dizimados por um outro cangaceiro bem mais impiedoso: o Coronel Tempo. À medida que as testemunhas oculares do episódio começaram a ser abatidos sistematicamente, a história , claro, tomou matizes novos e nuances mais heróicas e dramáticas se foram acrescentando. A ficção carece sempre se mostrar mais real que a própria realidade. Dias atrás, chegou a Matozinho a notícia mais palpitante dos últimos meses. Santino Parabelum, o último dos sobreviventes do cerco, iria visitar Matozinho. Desde o acontecido, nos idos de 1938, partira para São Paulo e lá se estabelecera e criara os filhos e netos. O velho provara ser um guerreiro: resistira ao outro cerco terrível , o de São Paulo e estava vivinho da silva e lúcido, trepado no alto dos seus 93 anos. A vila se engalanou para receber seu soldado de Pompéia. Quando a sopa parou na Praça da Matriz, Santino pulou de dentro lépido e esquipando. A Cabaçal de Mestre Ambrósio atacou um velho coco chamado de “embuá”. Mais de três dúzias de fogos riscaram os céus. A festa se estendeu por mais de cinco dias e “Parabelum” agüentou firme este outro cerco, já tantos anos depois.
Passados os dias, Matozinho começou a querer reabastecer seu caldeirão de mitos e procurou Santino , pedindo mais detalhes sobre a época histórica do “Fogo do Sabugo”. O velho pareceu não entender o assunto e pediu que lhe traduzissem melhor. O Prefeito Sindé Bandeira o lembrou : queriam saber mais da guerra de 38, quando Matozinho enfrentou Lampião e seus cabras e os tangeu para Angicos. Parabelum, então, trouxe uma versão bem menos heróica. O Bando nem sequer tinha chegado à vila. O único contato do Capitão e seus comparsas , havia sido com dois habitantes dali e nem um tiro se disparara: Serapião Candeia e Zeca do Ané de Couro. Santino, então, trocou o “Fogo” em miúdos:
O Cel Serapião estava na sua fazenda, no fim do dia, junto com muitos moradores. Já soubera do zum-zum-zum : a possível passagem dos facínoras por ali. Lampião os viu de longe e deixou o bando todo escondido. Veio só, devagarzinho, disfarçado. Quando chegou defronte da casa, como uma pessoa comum, deu com Serapião cagando uma goma danada:
--- Se esse Virgulino cair na besteira de vir aqui por Matozinho, minha gente, vou dar tanto sabacu nele, que o homem vai chegar na Bahia sem lamparina, sem pavio e sem querosene.
Neste momento, virou-se e deu com a figura estranha, montada no cavalo e perguntou, com cara feia:
--- Quem é o Senhor? Se apresente, cabra, se num quer apanhar.
Nisto viu a tropa de cangaceiros chegar junto do Capitão e ele responder:
--- Sou Lampião, cabra. E você quem diabo é ?
Serapião molhou as calças imediatamente e respondeu com voz trêmula e gaguejante:
---- Eu sou... eu sou... o finado Serapião...
Já Zeca do Ané de Couro, continuou Santino, para uma platéia pasma , encontrava-se sentado na frente de sua casa costurando um gibão e nem percebeu a chegada do bando de cangaceiros, com o Capitão à frente. Só asuntou quando sentiu uma dor terrível no pé direito. O cavalão de Virgulino esbarrara à sua frente e pisara justamente em cima do seu pé. Instintivamente, com a dor, Zeca levantou a cabeça e foi soltando o palavrão:
---- Filho da pu...
Só não completou o impropério porque deu com a cara de Lampião que o fitava com aquela cara de quem amola a faca antes da capação. Santino então completou:
---- Filho da pu...: puxa, Capitão, seja bem vindo a Matozinho! Capitãozinho, o senhor podia me fazer um favor? Será que o senhor poderia pedir ao seu cavalinho para tirar o pezinho dele de cima da minha pata ?
Depois do relato de Santino, a vila começou a se penalizar , estranhamente com ele:
--- Meu Deus, vejam como é a vida ! Um homem valente daqueles e , de repente, pegou a dizer arizia, ficou gagá, gagá !
13/03/09
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