-- Estranha natureza morta !
Pensou de boca escancarada enquanto aguardava, sentado na cadeira de suplícios, o dentista que saíra da sala, por um momento. No balcão ao lado, em meio ao emaranhado de instrumentos medievais de tortura , fitou novamente aquela paisagem insólita. Uma bandeja cheiinha de dentaduras, aguardando , desesperançadamente, como crianças a espera de adoção, alguma boca caridosa que lhes desse guarida. A do topo, dupla, apresentava dentes reluzentes e gengivas róseas , com encaixe perfeito, os da frente algo protusos, igualzinho a um maxilar de bode, quando se tira o couro. Os dentes cerravam-se firmemente como se o longínquo dono se visse acometido de alguma dor igualmente distante e indefinida. Caída de um lado, a prótese de dois caninos procurando, desapontada, pelos irmãos de arcada, em meio à nívea e desconhecida paisagem. À frente, uma ponte buscava , algo desesperada, as margens de um rio imponderável, sem compreender bem como uniria o inexistente ao desconhecido. Alguns dentes isolados, em meio àquela floresta ebúrnea, pareciam borregos enjeitados berrando atrás da mãe.No meio da pilha, um inciso de ouro se sobressaía claramente, observando os outros com um ar distante e fidalgal. À esquerda, uma dentadura inferior , com gengivas arroxeadas: se tivesse a língua ao seu lado, gritaria pela alma gêmea , espremida entre as bochechas de algum energúmeno da cidade.
Em feitio de um arqueólogo que se põe diante de um dente de dinossauro e faz detalhadas observações sobre o tamanho e os hábitos do bicho, começou a imaginar a história dos donos daquelas dentaduras. A dupla do topo , pelo jeitão, deve pertencer a um velho lazarino, ranzinza e que gostava muito de chupar cana em tempos idos, terminando meio bicudo. Os dois caninos do canto, ao que parece pertenceria a um sujeito espoletado, metido a cavalo do cão e que teve seus dois centroavantes fraturados, numa porrada, em alguma briga de bar. A ponte, com certeza, pela delicadeza do marfim, uniria os dois molares de uma senhora elegante, delgada , de fala mansa e sussurrante. O dente de ouro incrustado no inciso deixava antever claramente sua origem : um vendedor de bilhete de loteria e que trazia nos lábios a reluzente promessa de riqueza fácil. Os dentes isolados , sem muita história, preencheriam, igualmente , bocas de homens comuns, destes que passam pela vida sem lhes deixar qualquer traço. Só a chapa inferior mostrava-se misteriosa, como se compusesse o aparelho vocal de alguma rezadeira., de algum pai–de-santo.
Suas atividades arqueológicas terminaram com a volta do dentista à sala. Lá estava ele , boca ainda aberta, babador ao pescoço, aguardando , pacientemente, o reinício da seção de suplícios. Suportou o tormento com impressionante abnegação, como se a bandeja à sua frente se fizesse de platéia.
Saiu ,depois , pensativo. Imaginando: Quantas palavras permaneciam silentes em meio àquela selva de gengivas? Quantos beijos se escondiam envergonhados por trás da nudez descarada daquelas arcadas ? Quantos sorrisos pendiam , imóveis, de permeio à brancura ofuscante daqueles dentes ? Havia uma intrigante antítese entre a promessa fulgurante e a realidade insulsa. Matutou com suas cáries, quantas e quantas vezes não ficara de boca aberta diante da vida palpitante, igualzinho como acabara de fazer na cadeira do odontólogo. Seus lábios carregavam consigo segredos igualmente indevassáveis: declarações de amor trituradas e truncadas antes de se pronunciar; gritos sufocados, enforcados no patíbulo dos molares antes de ecoarem no mundo; ósculos que se reprimiram , se esconderam temendo o sutil toque de outros lábios. Não fosse o temor dos pincéis e o esmaecido das tintas escolhidas, quem sabe a aquarela de sua vida teria sido uma acolhedora marina e não esta natureza morta, com a mesma cara da insólita bandeja exposta no consultório do dentista .
Pensou de boca escancarada enquanto aguardava, sentado na cadeira de suplícios, o dentista que saíra da sala, por um momento. No balcão ao lado, em meio ao emaranhado de instrumentos medievais de tortura , fitou novamente aquela paisagem insólita. Uma bandeja cheiinha de dentaduras, aguardando , desesperançadamente, como crianças a espera de adoção, alguma boca caridosa que lhes desse guarida. A do topo, dupla, apresentava dentes reluzentes e gengivas róseas , com encaixe perfeito, os da frente algo protusos, igualzinho a um maxilar de bode, quando se tira o couro. Os dentes cerravam-se firmemente como se o longínquo dono se visse acometido de alguma dor igualmente distante e indefinida. Caída de um lado, a prótese de dois caninos procurando, desapontada, pelos irmãos de arcada, em meio à nívea e desconhecida paisagem. À frente, uma ponte buscava , algo desesperada, as margens de um rio imponderável, sem compreender bem como uniria o inexistente ao desconhecido. Alguns dentes isolados, em meio àquela floresta ebúrnea, pareciam borregos enjeitados berrando atrás da mãe.No meio da pilha, um inciso de ouro se sobressaía claramente, observando os outros com um ar distante e fidalgal. À esquerda, uma dentadura inferior , com gengivas arroxeadas: se tivesse a língua ao seu lado, gritaria pela alma gêmea , espremida entre as bochechas de algum energúmeno da cidade.
Em feitio de um arqueólogo que se põe diante de um dente de dinossauro e faz detalhadas observações sobre o tamanho e os hábitos do bicho, começou a imaginar a história dos donos daquelas dentaduras. A dupla do topo , pelo jeitão, deve pertencer a um velho lazarino, ranzinza e que gostava muito de chupar cana em tempos idos, terminando meio bicudo. Os dois caninos do canto, ao que parece pertenceria a um sujeito espoletado, metido a cavalo do cão e que teve seus dois centroavantes fraturados, numa porrada, em alguma briga de bar. A ponte, com certeza, pela delicadeza do marfim, uniria os dois molares de uma senhora elegante, delgada , de fala mansa e sussurrante. O dente de ouro incrustado no inciso deixava antever claramente sua origem : um vendedor de bilhete de loteria e que trazia nos lábios a reluzente promessa de riqueza fácil. Os dentes isolados , sem muita história, preencheriam, igualmente , bocas de homens comuns, destes que passam pela vida sem lhes deixar qualquer traço. Só a chapa inferior mostrava-se misteriosa, como se compusesse o aparelho vocal de alguma rezadeira., de algum pai–de-santo.
Suas atividades arqueológicas terminaram com a volta do dentista à sala. Lá estava ele , boca ainda aberta, babador ao pescoço, aguardando , pacientemente, o reinício da seção de suplícios. Suportou o tormento com impressionante abnegação, como se a bandeja à sua frente se fizesse de platéia.
Saiu ,depois , pensativo. Imaginando: Quantas palavras permaneciam silentes em meio àquela selva de gengivas? Quantos beijos se escondiam envergonhados por trás da nudez descarada daquelas arcadas ? Quantos sorrisos pendiam , imóveis, de permeio à brancura ofuscante daqueles dentes ? Havia uma intrigante antítese entre a promessa fulgurante e a realidade insulsa. Matutou com suas cáries, quantas e quantas vezes não ficara de boca aberta diante da vida palpitante, igualzinho como acabara de fazer na cadeira do odontólogo. Seus lábios carregavam consigo segredos igualmente indevassáveis: declarações de amor trituradas e truncadas antes de se pronunciar; gritos sufocados, enforcados no patíbulo dos molares antes de ecoarem no mundo; ósculos que se reprimiram , se esconderam temendo o sutil toque de outros lábios. Não fosse o temor dos pincéis e o esmaecido das tintas escolhidas, quem sabe a aquarela de sua vida teria sido uma acolhedora marina e não esta natureza morta, com a mesma cara da insólita bandeja exposta no consultório do dentista .
21/01/2009
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