sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Malabares

Os sinais premonitórios não podiam ser mais desfavoráveis. Postos nas mãos de qualquer pitonisa de meio de rua , certamente o parecer final seria contrário à decisão que Alcebíades deveria tomar. É -- e tinha que admitir sem nenhuma sombra de dúvida : encontrava-se diante da maior e mais terrível decisão de toda sua vida. Estava prestes a entrar numa seara inóspita onde praticamente só se viam rastros de entrada, os de saída eram sempre os de muitos feridos e mutilados. Aquela empreitada tinha todas as possibilidades de fazer água. Afinal, como diziam os amigos de mesa de bar, casamento é igualzinho a submarino: decolar não decola nunca, às vezes até bóia, mas não se engane não, cabra, o bicho foi projetado para afundar ! E, mais, um contrato que tem uma cláusula leonina de eternidade ! Partindo de uma loucura destas, como pode se descobrir algum remanescente de lucidez no final ? Um troço que vem sem prazo de validade estabelecido, que busca tornar permanente e verdadeira uma fotografia instantânea, no dinamismo fotográfico de toda uma vida ; empalhar sentimentos , fossilizar emoções, uma teratologia destas tem lá condições de vingar , de chegar a um bom termo? Bom observador, o velho Alcebíades colhera exemplos mil em amigos mais próximos. As paixões mais avassaladoras, os amores mais sublimes dissolviam-se após poucos anos nas portas dos tribunais, triturados em meio à baixaria das partilhas de bens e à crua vileza das pensões alimentícias. A regra permanecia imutável : O que começa em Motel acaba inevitavelmente em Pensão! E os amantes que se queriam tão bem, terminam sempre brigando pelos bens. O que era mágico transforma-se rapidamente em algo meramente contábil; as cartas de amor eterno viram, sem que se perceba, numa mera planilha do Excel. É que a vida, amigos, é um moinho como um dia já vaticinara aquele que colocou uma reluzente cartola no samba.
Talvez por isto mesmo Alcebíades tivesse sempre se mostrado tão resistente ao matrimônio: um bicho que rima com demônio. O tempo passara e fora se convertendo num solteirão convicto. Preferia comprar o amor a prestação nas esquinas da vida a pagar a vista no fórum da cidade. Mas quem lá entende os ínvios caminhos do coração? Já coroa, goiabão, conheceu Gisa. Viera trabalhar como garçonete no bar que ele , na companhia dos amigos , freqüentava quase que diariamente. A relação meramente comercial progrediu para uma amizade mais chegada e terminou em namoro. Os amigos , a princípio, botaram lenha na fogueira, só depois, ao perceber a gravidade do incêndio, começaram a chamar o Corpo de Bombeiros. Um pouco por acreditarem que não era a pessoa mais adequada para ele -- ela já andara esquentando os lençóis de vários da galera , antes do namoro se firmar – e muito pelo temor de perderem o companheiro de noitadas e madrugadas. Os extintores de incêndio, no entanto, chegaram tarde demais. Alcy, como o chamavam os amigos, resolvera definitivamente juntar as escovas de dentes com Gisa, um mês depois de se conhecerem. Afinal, como agora já racionalizava, casamento é como circo ruim, os que estão fora querem entrar para ver o espetáculo e os que estão dentro querem sair. Ele resolvera entupigaitar e subir no picadeiro, afinal, o palhaço, o que é ? O único empecilho agora eram os sinais premonitórios desfavoráveis.
Primeiro sua mãe não engoliu a nora, achou-a vulgar e parecer de mãe soa pior que praga de urubu. No dia do casamento a costureira não entregou o vestido de Gisa a tempo e ela, aos prantos, teve que ir à igreja com uma saia plissada e uma blusinha comum. O padre fez a cerimônia às carreiras e untou os noivos com água benta lançada de um vidro velho de Leite de Rosas. Quase não conseguem, num sábado, encontrar o juiz para proceder ao casamento civil. O meritíssimo estava numa carraspana danada , falava engrolado de não se compreender e junto a cada palavra que emitia aspergia farofa pelos cantos da boca. A noite de núpcias foi transferida praticamente para o banheiro da casinha de Alcy, acredita-se que os salgadinhos de D. Lúcia estavam quiabados, havendo necessidade de uma mudança total na área de serviços de Gisa & Alcy.
Hoje, já velhinhos, Alcy & Gisa contemplam os filhos e netos que se espraiam no quintal de casa e não compreendem como, com tantos sinais premonitórios contrários, estejam juntos por mais de trinta anos. Mesmo depois de alguns arranca-rabos, um sem-número de caras feias e outros tantos pega-prá-capar. Ali estão, próximos, respeitáveis, felizes. Como pôde tudo aquilo acontecer, quando o que se previa era o incêndio vertiginoso do circo ? Inescrutáveis veredas da vida ! Ao invés da catástrofe assistiu-se ao justíssimo equilíbrio dos pés no balanço da corda bamba; às circunvoluções aéreas quase que matemáticas dos malabares e ao encaixe perfeito dos braços no salto de trapézio sem rede de proteção.

23/01/09

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