sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

O Buraco da Fechadura


Todo o Cariri tem se espantado, nos últimos tempos, com um espectro que parece perseguir mentes e sensibilidades mais delicadas. Espatifaram-se por aqui quase todos os liames da nossa pudica intimidade. A individualidade que sempre foi uma dádiva pequeno-burguesa, guardada a sete chaves, de repente vê suas entranhas e vísceras expostas em praça pública. Primeiro foram vários alunos de escolas mais tradicionais da região que, sem nenhum pejo, fizeram verdadeiras auto-produções cinematográficas, eles mesmo atuando como protagonistas, e disseminaram verdadeiros filmes pornôs por todos veículos possíveis de comunicação : celulares, internet, DVD´s. Logo depois universitários caririenses seguiram a mesma idéia , filmando cenas cabeludíssimas que terminaram sendo vendidas no meio da rua, junto com outros filmes piratas de conteúdo menos picante. Recentemente já outra produção de conteúdo igualmente erótico tem circulado por todas as rodinhas mais inflamadas do Cariri, com cenas que antigamente não eram veiculadas nem em bordéis e lupanares. A pergunta de todos caririenses parece ser a mesma : Que doideira é esta? O que anda acontecendo com nossa juventude ? Em que baú escondeu-se, de vez, a pudícia, o respeito, a vergonha ?
Vamos tentar refletir um pouco sobre estas perguntas tão aterradoras que assaltam a consciência de pais e educadores nos dias atuais. É preciso lembrar que o que acontece por aqui é apenas um reflexo tardio do que vem ocorrendo na aldeia global. Uma das principais características da pós-modernidade é a total perda da nossa individualidade e todas as amarras do íntimo têm ido literalmente para cucuia. A amplitude e disseminação dos meios de comunicação contribuíram fortemente para isso. Basta lembrar um pouco o noticiário para constatar esta verdade insofismável. A Daniella Cicarelli foi flagrada num namoro escandaloso numa praia na Côte D´Azur com o namorado. Bill Clinton quase que termina demitido por seu namoro tornado público com a Cláudia Lewinsky. Um DVD da noite de núpcias da Paris Hilton, sabe-se bem como, terminou bombando no mundo todo. O Itamar Franco teve a namorada fotografada estrategicamente , sem calcinha. A Adriana Galisteu viu a mama exposta numa festa e a Juliana Paes foi fotografada, numa lufada de vento, com o piu-piu totalmente à mostra. Sem falar nas baixarias públicas da separação do Pitta e do Renan Calheiros. E o Ronaldinho Fenômeno exposto jogando bolas totalmente impensáveis. O Congresso Nacional, ano passado, até instalou uma CPI para investigar um mar de arapongagem que havia grampeado até o presidente do Supremo Tribunal Federal. Todo o dia as estações de televisão invadem casas e alcovas de celebridades -- com a permissão delas—revelando para um público sôfrego segredos incontáveis. O planeta, queiramos ou não, tem se transformado num imenso Big-Brother. O que , aliás, já havia sido previsto por George Orwell no seu “1984” e Hannah Arendt , ainda nos anos 50, firmara a principal característica dos regimes totalitários na quebra total da individualidade, uniformizando a tudo e a todos. Os dois pensadores visionários imprimiram uma importantíssima visão política do pós-guerra, jamais imaginaram, no entanto, que seriam as próprias pessoas que abririam mão da sua intimidade, expondo em praça pública seus segredos e anatomias mais íntimas. Na maior parte dos casos, elas próprias filmaram e divulgaram suas cenas mais picantes , com o intuito básico de virarem notícia e , depois, com uma revolta mal camuflada, virem a público reclamar da intimidade violada. Quais as profundas razões desta inacreditável exposição pública?
Vamos juntos trilhar as veredas percorridas já por alguns filósofos contemporâneos como Foucauld, Bauman, Gabler, Campbell e Morin. Vivemos numa era de Big-Bang dos meios de comunicação. A TV aberta e de assinatura, a Internet, o Celular, o I-POD, a câmara digital, as filmadoras nos conectam, em tempo real, às mais longínquas áreas da terra. Conhecemos melhor a Austrália do que nossa pequena vila, nos comunicamos mais facilmente com o amigo do MSN que mora na China do que com nosso vizinho que reside ao lado. Estas estrovengas, por sua vez, nos fixaram muito mais em casa, em frente ao computador e nos Cybers da vida. Falta a todos o sorriso, o toque, o olhar. E esta geração, por incrível que pareça, tornou-se extremamente solitária , são todos contaminados por uma espécie de solidão.com . Vivemos, hoje, em dois planetas que são bem diferentes. De um lado temos um mundo real onde circulamos, trabalhamos, nos deslocamos. Este mundo tem se tornado cada vez menos glamouroso, repleto de violência, de problemas mil, de corrupção, de trânsito caótico. Do outro lado, vivemos imersos num mundo virtual que se mostra o oposto do real. Na virtualidade temos a mágica possibilidade de ciclar, como um Mandrake, por muitos espaços, num abrir-fechar de olhos. Convivemos intimamente com os deuses do Olimpo dos tempos atuais que são as celebridades. Basta um toque e elas estão ali, à nossa frente, ao nosso dispor. Invadimos suas casas, seus quartos, suas festas mais íntimas. Conhecemos seus segredos mais recônditos e podemos vê-las sem roupa, nas mais impensáveis intimidades. Elas fazem parte da nossa família. As celebridades são hoje pessoas da nossa convivência diária. A briga da Flora com a Donatella interessa muito mais do que qualquer arranca-rabo de parentes na nossa casa. A doença do pai não choca tanto quanto a eliminação do Noberto no BBB-9. Este é o mundo chamado de Pós-Realidade e que traz consigo algumas peculiaridades. Primeiro, neste espaço glamouroso, todos se sentem de alguma maneira anônimos e intocáveis: como se irmãos do Homem-Invisível pudéssemos cometer as mais variadas ações sem que ninguém pudesse encontrar o nosso ID. Esta característica nos torna poderosos, ousados e com uma imunidade garantida. Em segundo lugar, o espaço virtual é extremamente mutável e para permanecer na vitrine é imprescindível se tornar notícia a todo momento, a todo instante. As celebridades, então, alimentam um monstro que as digere a cada dia. Ser célebre é estar na mídia e isto leva a uma super-exposição, a uma espetacularização da vida cotidiana. Quando a celebridade é assaltada, antes de chamar a polícia ela avisa à Revista “Caras”. Neste jogo, vale tudo e o escândalo se mostra sempre como o prato mais apetitoso para ser degustado pelos meios de comunicação. Fazemnos todos parte de um mesmo Reality Show. E o mundo virtual tem outra característica importante, a celebridade que conhecemos e que faz parte da nossa família é apenas um mero personagem, criado pelos veículos de informação e são estes personagens que hoje substituem, para todos nós, os antigos heróis dos romances, dos filmes, das histórias em quadrinhos.
Amigos íntimos de tantas celebridades do mundo virtual, nos sentimos também importantes e célebres e por que não imitá-los ? Por que não utilizar os mesmos remédios para pousarmos de heróis, também, nos palcos da vida ? E, já que além disso tudo, somos imunes e anônimos , por que não tirar a roupa e divulgar? Por que não fazer um filmezinho erótico com as colegas de trabalho e de classe e lascar no You-Tube ? Por que não dar um tirozinho no John Lennon ou na Madonna? O importante é estar na crista da onda: o nível de exposição na mídia faz-se a régua atual para se mensurar a importância e celebridade de uma pessoa de qualquer nível social. Nos critérios da pós-realidade não existem mais santos-demônios, burros-inteligentes, heróis-bandidos, ricos-pobres, o universo se divide apenas nos que têm visibilidade e nos que são invisíveis.
O grande problema é como alimentar a fugacidade deste mundo virtual. Como alimentar esta besta insaciável a todo instante? Por outro lado, o que fazer do mundo real e como resolver seus problemas cada dia mais prementes e urgentes? Bons tempos aqueles em que a “brecha” da mocinha era a glória máxima da rapaziada e a maior devassidão do mundo tinha que ser assistida, sorrateiramente, através do buraco da fechadura !


30/01/09

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Malabares

Os sinais premonitórios não podiam ser mais desfavoráveis. Postos nas mãos de qualquer pitonisa de meio de rua , certamente o parecer final seria contrário à decisão que Alcebíades deveria tomar. É -- e tinha que admitir sem nenhuma sombra de dúvida : encontrava-se diante da maior e mais terrível decisão de toda sua vida. Estava prestes a entrar numa seara inóspita onde praticamente só se viam rastros de entrada, os de saída eram sempre os de muitos feridos e mutilados. Aquela empreitada tinha todas as possibilidades de fazer água. Afinal, como diziam os amigos de mesa de bar, casamento é igualzinho a submarino: decolar não decola nunca, às vezes até bóia, mas não se engane não, cabra, o bicho foi projetado para afundar ! E, mais, um contrato que tem uma cláusula leonina de eternidade ! Partindo de uma loucura destas, como pode se descobrir algum remanescente de lucidez no final ? Um troço que vem sem prazo de validade estabelecido, que busca tornar permanente e verdadeira uma fotografia instantânea, no dinamismo fotográfico de toda uma vida ; empalhar sentimentos , fossilizar emoções, uma teratologia destas tem lá condições de vingar , de chegar a um bom termo? Bom observador, o velho Alcebíades colhera exemplos mil em amigos mais próximos. As paixões mais avassaladoras, os amores mais sublimes dissolviam-se após poucos anos nas portas dos tribunais, triturados em meio à baixaria das partilhas de bens e à crua vileza das pensões alimentícias. A regra permanecia imutável : O que começa em Motel acaba inevitavelmente em Pensão! E os amantes que se queriam tão bem, terminam sempre brigando pelos bens. O que era mágico transforma-se rapidamente em algo meramente contábil; as cartas de amor eterno viram, sem que se perceba, numa mera planilha do Excel. É que a vida, amigos, é um moinho como um dia já vaticinara aquele que colocou uma reluzente cartola no samba.
Talvez por isto mesmo Alcebíades tivesse sempre se mostrado tão resistente ao matrimônio: um bicho que rima com demônio. O tempo passara e fora se convertendo num solteirão convicto. Preferia comprar o amor a prestação nas esquinas da vida a pagar a vista no fórum da cidade. Mas quem lá entende os ínvios caminhos do coração? Já coroa, goiabão, conheceu Gisa. Viera trabalhar como garçonete no bar que ele , na companhia dos amigos , freqüentava quase que diariamente. A relação meramente comercial progrediu para uma amizade mais chegada e terminou em namoro. Os amigos , a princípio, botaram lenha na fogueira, só depois, ao perceber a gravidade do incêndio, começaram a chamar o Corpo de Bombeiros. Um pouco por acreditarem que não era a pessoa mais adequada para ele -- ela já andara esquentando os lençóis de vários da galera , antes do namoro se firmar – e muito pelo temor de perderem o companheiro de noitadas e madrugadas. Os extintores de incêndio, no entanto, chegaram tarde demais. Alcy, como o chamavam os amigos, resolvera definitivamente juntar as escovas de dentes com Gisa, um mês depois de se conhecerem. Afinal, como agora já racionalizava, casamento é como circo ruim, os que estão fora querem entrar para ver o espetáculo e os que estão dentro querem sair. Ele resolvera entupigaitar e subir no picadeiro, afinal, o palhaço, o que é ? O único empecilho agora eram os sinais premonitórios desfavoráveis.
Primeiro sua mãe não engoliu a nora, achou-a vulgar e parecer de mãe soa pior que praga de urubu. No dia do casamento a costureira não entregou o vestido de Gisa a tempo e ela, aos prantos, teve que ir à igreja com uma saia plissada e uma blusinha comum. O padre fez a cerimônia às carreiras e untou os noivos com água benta lançada de um vidro velho de Leite de Rosas. Quase não conseguem, num sábado, encontrar o juiz para proceder ao casamento civil. O meritíssimo estava numa carraspana danada , falava engrolado de não se compreender e junto a cada palavra que emitia aspergia farofa pelos cantos da boca. A noite de núpcias foi transferida praticamente para o banheiro da casinha de Alcy, acredita-se que os salgadinhos de D. Lúcia estavam quiabados, havendo necessidade de uma mudança total na área de serviços de Gisa & Alcy.
Hoje, já velhinhos, Alcy & Gisa contemplam os filhos e netos que se espraiam no quintal de casa e não compreendem como, com tantos sinais premonitórios contrários, estejam juntos por mais de trinta anos. Mesmo depois de alguns arranca-rabos, um sem-número de caras feias e outros tantos pega-prá-capar. Ali estão, próximos, respeitáveis, felizes. Como pôde tudo aquilo acontecer, quando o que se previa era o incêndio vertiginoso do circo ? Inescrutáveis veredas da vida ! Ao invés da catástrofe assistiu-se ao justíssimo equilíbrio dos pés no balanço da corda bamba; às circunvoluções aéreas quase que matemáticas dos malabares e ao encaixe perfeito dos braços no salto de trapézio sem rede de proteção.

23/01/09

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Natureza morta



-- Estranha natureza morta !
Pensou de boca escancarada enquanto aguardava, sentado na cadeira de suplícios, o dentista que saíra da sala, por um momento. No balcão ao lado, em meio ao emaranhado de instrumentos medievais de tortura , fitou novamente aquela paisagem insólita. Uma bandeja cheiinha de dentaduras, aguardando , desesperançadamente, como crianças a espera de adoção, alguma boca caridosa que lhes desse guarida. A do topo, dupla, apresentava dentes reluzentes e gengivas róseas , com encaixe perfeito, os da frente algo protusos, igualzinho a um maxilar de bode, quando se tira o couro. Os dentes cerravam-se firmemente como se o longínquo dono se visse acometido de alguma dor igualmente distante e indefinida. Caída de um lado, a prótese de dois caninos procurando, desapontada, pelos irmãos de arcada, em meio à nívea e desconhecida paisagem. À frente, uma ponte buscava , algo desesperada, as margens de um rio imponderável, sem compreender bem como uniria o inexistente ao desconhecido. Alguns dentes isolados, em meio àquela floresta ebúrnea, pareciam borregos enjeitados berrando atrás da mãe.No meio da pilha, um inciso de ouro se sobressaía claramente, observando os outros com um ar distante e fidalgal. À esquerda, uma dentadura inferior , com gengivas arroxeadas: se tivesse a língua ao seu lado, gritaria pela alma gêmea , espremida entre as bochechas de algum energúmeno da cidade.
Em feitio de um arqueólogo que se põe diante de um dente de dinossauro e faz detalhadas observações sobre o tamanho e os hábitos do bicho, começou a imaginar a história dos donos daquelas dentaduras. A dupla do topo , pelo jeitão, deve pertencer a um velho lazarino, ranzinza e que gostava muito de chupar cana em tempos idos, terminando meio bicudo. Os dois caninos do canto, ao que parece pertenceria a um sujeito espoletado, metido a cavalo do cão e que teve seus dois centroavantes fraturados, numa porrada, em alguma briga de bar. A ponte, com certeza, pela delicadeza do marfim, uniria os dois molares de uma senhora elegante, delgada , de fala mansa e sussurrante. O dente de ouro incrustado no inciso deixava antever claramente sua origem : um vendedor de bilhete de loteria e que trazia nos lábios a reluzente promessa de riqueza fácil. Os dentes isolados , sem muita história, preencheriam, igualmente , bocas de homens comuns, destes que passam pela vida sem lhes deixar qualquer traço. Só a chapa inferior mostrava-se misteriosa, como se compusesse o aparelho vocal de alguma rezadeira., de algum pai–de-santo.
Suas atividades arqueológicas terminaram com a volta do dentista à sala. Lá estava ele , boca ainda aberta, babador ao pescoço, aguardando , pacientemente, o reinício da seção de suplícios. Suportou o tormento com impressionante abnegação, como se a bandeja à sua frente se fizesse de platéia.
Saiu ,depois , pensativo. Imaginando: Quantas palavras permaneciam silentes em meio àquela selva de gengivas? Quantos beijos se escondiam envergonhados por trás da nudez descarada daquelas arcadas ? Quantos sorrisos pendiam , imóveis, de permeio à brancura ofuscante daqueles dentes ? Havia uma intrigante antítese entre a promessa fulgurante e a realidade insulsa. Matutou com suas cáries, quantas e quantas vezes não ficara de boca aberta diante da vida palpitante, igualzinho como acabara de fazer na cadeira do odontólogo. Seus lábios carregavam consigo segredos igualmente indevassáveis: declarações de amor trituradas e truncadas antes de se pronunciar; gritos sufocados, enforcados no patíbulo dos molares antes de ecoarem no mundo; ósculos que se reprimiram , se esconderam temendo o sutil toque de outros lábios. Não fosse o temor dos pincéis e o esmaecido das tintas escolhidas, quem sabe a aquarela de sua vida teria sido uma acolhedora marina e não esta natureza morta, com a mesma cara da insólita bandeja exposta no consultório do dentista .



21/01/2009