quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Crônica de uma Romaria em Bertioga


Agosto jogava nos olhos dos matozenses dois sentimentos conflitantes. Nublavam-se as almas, um pouco, com o cinza do tempo e o calor escaldante. Em meio à terra devastada apenas um ou outro juazeiro, como um soldado de Pompéia, mantinha a lembrança única do verdor e da fartura. O Paranaporã, batendo piaba, mostrava-se vivo ainda em pequenos barreiros e caldeirões ao longo do seu curso. Os matozenses, no entanto, tinham, por outro lado, um motivo ainda de alegria. Comemorava-se, justo naquele mês, a grande Festa de Nossa Senhora dos Desafogados da vizinha e hoje próspera Vila de Bertioga. Após uma sucessão de casos inexplicáveis da padroeira milagreira , a festividade aos poucos se foi encorpando. De início doméstico e regional, o evento ampliou-se com o passar dos anos. A cidade quase que duplicava a sua população neste período.
Vinham romeiros dependurados em burros, jegues, paus-de-arara de tudo quanto era biboca deste país. Como na vida, o sagrado e o profano conviviam lado a lado. Todas ruas de Bertioga se atulhavam de pequenos comerciantes negociando tudo quanto é de picuaios e quinquilharias. Alimentos regionalíssimos : panelada, buchada, filhóis, passa-raiva, fígado com tapioca. Lembranças de tudo quanto é nacionalidade, predominando importados da China e do Paraguai esparramavam-se desordenadamente pelo chão. E, principalmente, artigos religiosos: terços, imagens, fitinhas, botons, ex-votos. Um parque de diversões se espalhava por toda praça da matriz, enchendo de felicidade meninos e adolescentes: Carrossel, Canoas, gangorras, Roda-Gigante. As novenas , concorridíssimas, deixavam irrespirável a já pequena igrejinha de Nossa Senhora dos Desafogados. O fiel pagamento das promessas, uma espécie de escambo espiritual, reabastecia de óbulos variados os cofres da paróquia. Missas se sucediam em três turnos e faces sofridas e mãos calejadas buscavam conseguir num outro mundo o que lhes havia sido confiscado descaradamente aqui na terra. O cabaré de D. Maria Juriti, do outro lado da cidade, reabastecia-se de madames vindas até da capital para abastecer o superaquecido mercado de pecados e vícios que depois seriam , piedosamente, descontados nas confissões com o Padre Vanderico, pela manhã.
Junto , naquela turba amorfa, se uniam romeiros, comerciantes, religiosos, políticos, agricultores e, também , os aproveitadores ; como aliás em qualquer aglomerado humano. De boa fé, ali, de coração aberto, apenas os romeiros e, conseqüentemente, anestesiados na sua crença, sujeitos a ataques de malandros de toda espécie. A crônica da última Romaria em Bertioga me passou o velho Giba, proprietário do mais famoso botequim de Matozinho.
Há em Bertioga uma santeira bastante peculiar chamada D. Regina. Viera da banda das Alagoas, em uma das romarias, anos atrás e acabou se estabelecendo na vila. Percebendo o mercado propício resolveu ser artesã em barro, esculpindo imagens de santos para vender, depois, aos romeiros. Sem muita habilidade, construía, geralmente, imagens disformes parece que aprendidas dos quadros de um Picasso que jamais conhecera. Na hora da comercialização, a identificação do santo se tornava, o mais das vezes, quase que impossível e a nossa D. Regina tinha pavio curto e de rastilho inflamadíssimo. O romeiro , observando um São Sebastião, perguntava o preço do Cristo crucificado, aí nossa santeira saltava com quatro pedras na mão. Nesta última romaria, um velho de São José do Egito, observando as peças à venda, pegou um pretenso São José, que (se sabe lá como ?) saíra torto feito o Corcunda de Notre Dame .Desconhecendo a caninana, caiu na besteira de perguntar , na sua inocência:
--- Ei , a Cuma é este Frei Damião ?
Regina enrugou o cenho e respondeu rispidamente que já tinha sido vendido. O matuto continuou observando as imagens expostas e se deteve, de repente, numa imagem de uma santa mal engembrada , vestida com um vestido longo pintado de verde abacate. Voltou a se interessar:
--- Ei dona, que santa esquisita é essa ?
A santeira saltou de lá:
--- Não ta conhecendo, não ? É Nossa Senhora dos Desafogados !
O matuto retrucou, com suas dúvidas:
--- Nossa Senhora dos Desafogados ? Mas toda vestida de verde, onde já se viu ?
Regina, então, cuspiu de lá :
---- É porque nesta época, seu abestado, ela tava servindo o Tiro de Guerra...
O caso mais insólito, no entanto, segundo Giba, aconteceu em uma das barracas que vendia um cafezinho esperto, com beiju, nas proximidades da Roda-Gigante. D. Arlinda , a proprietária, possuía um dos pontos mais tradicionais da Praça de Alimentação de Bertioga. A principal atração do estabelecimento, além da comida, era um rádio grande Transglobe de 12 faixas em que ela sintonizava, geralmente, a Rádio Sociedade da Bahia. Em períodos de festa, o aparelho tocava de sol a sol e engolia um carrego de pilha Ray-O-Vac todo santo dia. D. Arlinda colocava o Rádio, o mais das vezes, em um pequeno tamborete, lá no fundo da barraca, encostado na lona. Pois não é que um malaca, de tanto ouvi-lo tocar, cresceu os olhos e resolveu surrupiá-lo da dona! Esperou , à noite, o momento de pico no movimento , escorregou, discretamente para trás da barraca, meteu a mão por trás da lona, desligou o aparelho, enquanto empostava a voz e falava com aquele sotaque de FM:
--- Atenção! Atenção ! Interrompemos a nossa programação temporariamente por falta de energia elétrica em nossos transmissores, voltaremos dentro de alguns momentos. Não mudem a sintonia da nossa Rádio Sociedade da Bahia!
Estabelecido e esclarecido o problema, puxou o rádio e desapareceu na esquina para nunca mais voltar. Só uma hora depois D. Arlinda deu fé do problema técnico mas já era tarde demais. Até hoje, ao que parece, ainda está faltando energia elétrica em Salvador.

Crato, 11/12/08

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