E as manhãs, as luas cheias, os crepúsculos e as auroras? Quem detém os seus passes ? Todos aqueles que os conseguem apreciar, que não deixaram as retinas se embaçarem definitivamente com a névoa cotidiana. O luar não me pertence se ao olhar para o céu só consigo enxergar o néon. Nem é do astronauta ou do astrônomo que o observa com um olhar tecnicista, do mesmo jeito que o anel de ouro não é propriedade privada do ourives. Tudo que nos toca e emociona pode ser arrolado como parte do nosso inventário de bens e de sonhos.
Esta semana, olhando as ruas e praças aqui do Crato, pus-me a imaginar se elas são um bem público, de todos os cidadãos da cidade de Frei Carlos. Claro que numa visão mais utilitarista todos que percorrem as avenidas e logradouros podem se gabar de proprietários. Muitas vezes, inclusive, justificando monetariamente : tudo isto que aí está, foi construído com o dinheiro dos nossos impostos! Todos têm lá uma nesguinha de tudo isto , se fôssemos proceder à partilha. O grosso da população desta cidade, no entanto, é detentora de tantos outros bens mais individuais e privados que sequer se dá conta desta outra posse bem mais coletiva, comunitária e de tão pouco valor de venda e de troca.
Há, no entanto, raríssimas figuras que têm a rua e as praças como sua fábrica, seu ofício e , muitas vezes, até sua casa. Mendigos, boêmios, “drome-sujos”, bêbados têm uma relação quase que incestuosa com os logradouros públicos. Para eles as avenidas não são vias de trânsito, mas de permanência. As marquises e bancos se transformam facilmente em teto e cama e os jardins se fazem de quintais e pomares . Eles , na verdade, são seus reais proprietários por usucapião.
No domingo último, um destes grandes latifundiários urbanos partiu na viagem derradeira. Uma das mais populares personalidades cratenses. Mais conhecido que muitos políticos e poderosos do Cariri. Zé Bedeu amealhou em vida o que a existência lhe legou. Dono de muitas ruas, milionário de muitas marquises, feudalista de inúmeras praças, banqueiro de tantos bancos, sócio de muitos bares. Hedonísticamente percorreu a travessia. Aqui veio para diversão de todas as horas e não para o suor de todos os dias. No mar de insensatez da vida, não nadou contra a corrente: abriu os braços , boiou e se deixou levar no torvelinho. Como suportar a amputação diária de ilusões e desejos, sem anestesia? Sabia-se pó, entendia que umedecido pelo álcool chegaria a lama e foi desta argamassa edificou pacientemente suas ruínas. Deixa uma imensa herança imaterial imune totalmente à sanha dos inventários e das partilhas. Todos aqueles que um dia se emocionarem com o barulho das fontes de pé-de-serra, com o orvalho que borrifa a bromélia, com a sanguínea aurora que vaza o ventre da noite podem se considerar seus herdeiros universais.
27/11/08
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