O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem..
Guimarães Rosa
Mitos são sonhos públicos,
sonhos são mitos privados.
Joseph Campbell
Era um menino na ingenuidade de seus seis anos. A imagem que lhe feriu os olhos, naquele dia vinte e sete de dezembro, do sequíssimo ano de 1958, lhe permanece ainda hoje indelével nas retinas, passados exatos cinqüenta anos. Um imenso cortejo fúnebre tomava toda a Praça da Sé e a Rua Padre Sucupira, dirigindo-se ao Cemitério Nossa Senhora da Piedade. O menino, atento, observava aquela serpente imensa, saracoteando qual um dragão chinês, composta de figuras tristes, circunspectas, sisudas. Sequer percebeu a gravidade do momento que ia bem além das suas fantasias infantis. Só muito tempo depois, soube que havia testemunhado o enterro de uma das personalidades mais míticas de todo Cariri: o Dr. Gesteira. Ele nos deixava no auge da experiência de vida, com meros cinqüenta anos . Neste tempo de revelação, o menino já havia se tornado médico. Por ironia do destino, adotado a mesma especialidade, Cirurgia Geral, daquele profissional estimado. Ele, prematuramente, naquele dia interrompia uma vida de quase vinte anos dedicados à salvar vidas, aplacar a dor, minorar o sofrimento do povo caririense.
Dr. Antonio José Gesteira nasceu em Recife há exatos cem anos. Formou-se no Rio de Janeiro em 1934. Fez sua especialização
Dr. Gesteira marcou profundamente a vida cratense nos dezoito anos que conosco permaneceu. Empregou todos os seus conhecimentos médicos e cirúrgicos , atendendo com uma presteza sem par todos os que o procuravam. A Casa de Saúde N. Senhora da Conceição faliu por duas vezes. Terminado seu apostolado entre nós , nada levou, deixou entre todos apenas a saudade que transcendeu gerações e ainda o faz hoje profundamente presente entre nós, tantos anos depois. Não bastasse sua atividade profissional, Dr. Gesteira era um intelectual do mais fino jaez. Poliglota, orador de recursos vastos, comovia e enfeitiçava platéias. Exercia ainda profunda atividade política, ligado a uma ala mais à esquerda da UDN, fizera-se, visionariamente, um anti-getulista fanático. Seus posicionamentos políticos levaram-no inclusive à prisão , tendo sido detido e levado à Fortaleza. Seu retorno ao Crato foi uma verdadeira apoteose, recebido com Banda de Música , por uma multidão de admiradores. Boêmio incorrigível, Dr. Gesteira conviveu com toda uma geração de grandes amantes da noite .
Toda esta trajetória de vida, no entanto, parece pouco para explicar a figura mítica
Onde acaba o homem e começa o mito? A vida beneditina do Dr. Gesteira certamente contribuiu pra isso. Toda a história de humanismo, de desprendimento e de carinho para com o sofrimento do próximo certamente o tornaram presente na memória dos caririenses. O advento da Cirurgia para o Cariri, trazida por suas habilidosas mãos, o fez muito especial. Seu desaparecimento prematuro, por outro lado, consternou toda a cidade e há de ter contribuído para que sua presença permanecesse tão forte entre nós. Mas , passados tantos anos, desaparecidos muitos dos testemunhas da sua geração, fica difícil entender a permanência prodigiosa do seu nome no inconsciente coletivo caririense. Talvez o que mais contribuiu para tanto tenha sido a dimensão humana do nosso esculápio. Dr. Gesteira tinha suas qualidades e seus defeitos muito à mostra, muito visíveis e isto o tornava profundamente humano. Numa sociedade em que a hipocrisia, o escamoteio, o disfarce e a máscara sempre se mostraram como utensílios de primeira necessidade nas nossas relações, o desnudamento do Dr. Gesteira o tornou um ícone de humanidade. Seu próprio nome indica esta capacidade de gestar, de gerar. Ele provou os dizeres de Campbell de que é entrando dentro do abismo que se descobre os tesouros da vida e que é onde exatamente você tropeça que está escondido este tesouro.
J. Flávio Vieira
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