Antigamente se morria.
1907, digamos, aquilo sim
É que era morrer.
Morria gente todo dia,
E morria com muito prazer,
Já que todo mundo sabia
Que o juízo final viria
E todo mundo ia renascer.
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Hoje, a morte está difícil.
Tem recursos , tem asilos, tem remédios.
Agora a morte tem limites.
E em caso de necessidade,
A ciência da eternidade
Inventou a criônica.
Hoje,sim,pessoal,
a vida é crônica
p. leminsky
Recentemente o cinema perdeu um dos seus maiores ícones : esmaeceram os olhos azuis turquesa de Paul Newman. Ator em algumas dezenas de filmes, diretor premiado e um filantropo clássico daqueles que a mão esquerda não consegue perceber as doações que fazem a direita. A despedida de Newman trouxe alguns sinais perceptíveis da modernidade tecnológica em que vivemos. Acossado por um câncer pulmonar, após uma penosa via crucis de tratamento oncológico, ele simplesmente percebeu que chegara ao fim da jornada e, placidamente, pediu para se recolher à sua casa e morrer naturalmente junto com seus familiares mais queridos. O gesto resignado de Paul nos abre janelas para a reflexão sobre os rumos da ciência no mundo de hoje.
A medicina avançou no últimos cem anos muito mais do que o fez desde os tempos imemoriais até o Século XIX. Deixamos o empirismo de lado, afastamo-nos da magia, da bruxaria, dos encantadores de serpente, das sacerdotisas, dos barbeiros e das pitonisas. O Ato Médico deixou de ser algo mais do que uma simples pajelança. Descobrimos a origem e a cura de um sem número de moléstias, as especialidades médicas fizeram com que os profissionais aprofundassem o conhecimento de áreas médicas até então jamais perscrutadas. Junto a tudo isso, desenvolvemos um moderníssimo aparelho tecnológico que tem auxiliado como nunca no diagnóstico e tratamento de patologias várias. Cirurgia robótica, Vídeo-Cirurgia, Ressonâncias Magnéticas e tomografias; Rins , pulmões, corações artificiais; transplantes de múltiplos órgãos que pareciam arrancados da Ficção Científica hoje fazem parte do dia a dia de muitos Centros Médicos mundo afora. A população mundial aumentou consideravelmente sua esperança de vida e hoje convivemos com inúmeras figuras centenárias na nossa cidade. Vistos de hoje, os esculápios do passado carregam consigo um indisfarçável ar retrô. Seus partos feitos em domicílio, seus atendimentos de casa em casa, suas cirurgias heróicas, sua íntima relação com pacientes e familiares cheiram a bolor . O atendimento fora do ambiente estritamente hospitalar nos causam estranheza e muitas vezes pavor. Imaginar que seria possível atender com presteza pacientes sem as facilidades do computador, da Internet, da imagenologia soam como loucura clara, ampla e evidente. Sequer percebemos que os profissionais de saúde de outrora faziam exatamente o que hoje fazemos : utilizavam toda o conhecimento científico que tinham às suas mãos para lenir dores e curar doenças. No futuro seremos nós que pareceremos frágeis, superficiais e inconseqüentes para os avanços que ainda estão por florescer.
O avanço tecnológico vertiginoso dos últimos quartéis de séculos trouxe consigo alguns efeitos colaterais. A formação humanística do médico passou a ser pouco a pouco substituída pelo arsenal tecnológico. Aos poucos passamos a ver o paciente à nossa frente como tendo a mesma complexidade do DVD defeituoso examinado pelo eletrotécnico.O paciente deixou de ter emoções, paixões, frustrações. É hoje um amontoado de órgãos que são loteados entre diversos especialistas na busca de defeitos orgânicos concretos e palpáveis. Esquartejado igualzinho a Tiradentes após a forca. A relação Médico-Paciente, imprescindível à cura, existe hoje de modo formal e burocrático.Ninguém ouve ninguém, a História Clínica e o Exame Físico são meros artifícios para se solicitar os infalíveis exames complementares que haverão de selar o diagnóstico uno e definitivo. A tecnologia ungiu ainda os médicos de uma onipotência visível e cada vez mais perceptível nas novas gerações. Nossas decisões são definitivas e indiscutíveis. Permitimos, no máximo, discuti-las com colegas mais experientes. Tendemos, no entanto, a fazê-las passar totalmente ao largo da visão daquelas a quem elas são dirigidas: o paciente. As UTI´s estão repletas de muitos pacientes em vida vegetativa, fora de qualquer possibilidade terapêutica. Muitos que não tiveram direito a uma vida socialmente justa e , agora, sem direito nenhum sequer a uma morte digna, junto dos seus familiares, longe da gélida terapia intensiva. Na oncologia, onde os limites entre o Ser-Não-Ser, são mais próximos e visíveis , o humanismo se faz mais que necessário. A maior parte dos pacientes, diante da sentença capital, não busca muitas vezes a cura, mas o apoio, o conforto, a solidariedade. E qualquer médico sabe que quando não existe nenhuma coisa mais a se fazer em termos de terapêutica existe ainda uma infinidade de procedimentos a se providenciar em termos de humanismo.
A Medicina vem descobrindo que as gerações passadas de médicos têm uma imensa contribuição a dar neste aspecto. Próximos das famílias se faziam não só o técnico, mas o amigo, o conselheiro. Tratando seus pacientes no ambiente doméstico, não os expunha à frieza dos corredores de hospitais e das maternidades. Sabiam ouvir , coisa imprescindível a um bom profissional. A maior parte dos pacientes procura o consultório muitas vezes para serem ouvidos, pois na correria dos dias atuais, ninguém tem mais tempo de conversar com ninguém. Saber ouvir é tão importante quanto ter o conhecimento científico para prescrever. Pedro Nava dizia com propriedade que ,para o médico, ler Balzac é tão importante quanto estudar o compêndio de Medicina Interna.A morte, também, precisa ser entendida como um processo natural e não como a falência da Medicina. Devemos fazer todo o esforço para não transformar a morte a vista numa penosa morte a módicas prestações diárias. E é sempre bom lembrar que médico não tem cliente, tem paciente.
E mais que tudo: somos falíveis, frágeis e muitas vezes impotentes já que somos feitos da mesmíssima matéria dos nossos pacientes. A autonomia do paciente é assim uma verdade sagrada. Não temos o direito de prescrever um melhoral a qualquer paciente, sem sua expressa , clara e definitiva anuência, por mais penoso, duro que isto muitas vezes possa ser. É preciso entender definitivamente que a Medicina foi posta na Universidade na área de Saúde por mera decisão pedagógica, mas na realidade fazemos parte da área de Ciências Humanas. Não nos formamos técnicos em Medicina somos bacharéis em humanidades.
J. Flávio Vieira
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