José Flávio Vieira.
domingo, 28 de setembro de 2008
Quaje me lasco em banda
José Flávio Vieira.
terça-feira, 16 de setembro de 2008
Dentes à mostra

Atenção , amigos! Apertem os cintos ! Começou a temporada de caça ao voto. Os sorrisos estão espalhados por todas as esquinas.A solidariedade – quem diria - tornou-se epidêmica .Os carros de som poluem a cidade com péssimas paródias, montadas em músicas de quinta categoria.Cada candidato tem um, pelo menos.O voto é um objeto realmente precioso. Basta ver políticos que odeiam certos apelidos, em ano eleitoral assumem-nos, por mais humilhantes que sejam. Em Matozinho , para vocês relaxarem um pouco, um carroceiro que carrega o terrível epíteto de “Bimba de Jegue” , já tinha matado pelo menos dois desavisados que teimaram em chamá-lo assim. Pois não é que na atual campanha , simplesmente assumiu risonhamente o popular apelido e o estampou em todo material de divulgação! O mais ameaçador, no entanto, era o slogan que vinha logo abaixo do famoso “Bimba de Jegue” : “Sempre na sua Retaguarda”!
Os muros calabreados com tanta tinta inútil , se pudessem, cairiam por terra revoltados: e eles serviam, anteriormente, não era para afastar os ladrões das casas de família ? Os postes , atônitos, se vêem , de repente , carregando retratos de candidatos, clicados , pelo menos há trinta anos . Todos jovens, cabelos pretíssimos, dentes à mostra , não se sabe bem se para o riso ou para a mordida. Em todo canto de rua , bandeiras tremulam nas mãos de correligionários de última hora, pagos religiosamente, para manterem o entusiasmo da campanha. A maior parte dos candidatos, então, parece até membros da OPEP, nenhum cabo eleitoral paga gasolina, consegue nos postos, grátis, por conta dos partidos, inclusive para uso em isqueiro, velocípede e patinete.
Daqui a pouco, choverão folders, faixas, panfletos, botons, camisetas, cartazes, outdoors, santinhos, chaveiros, bonés e, nos últimos e decisivos dias, na calada da noite, choverá, nos bairros mais pobres, um metal bem mais precioso. Os showmícios se atapetarão de palcos caros, fogos de artifício e bandas de forró péssimas e dispendiosas: única maneira de atrair o povo para agüentar discursos insulsos e plataformas vazias. Surgem , neste tempo, muitas perguntas inquietantes .Existe democracia num pleito onde um candidato por melhor e mais preparado que seja , se não for rico, não tem as mínimas condições de concorrer ? Como os vencedores recuperarão o gigantesco investimento feito na campanha ? Quem sabe, são bem intencionados filantropos, prontos a investir no bem da humanidade...
Para o povo a única alegria virá do horário eleitoral gratuito, sem nenhuma dúvida o melhor programa de humor da televisão nacional.Uma outra novidade é que o STJ passou a exigir dos candidatos a vereador um grau mínimo de instrução. Os candidatos terão de fazer provas. O primeiro problema é que não se determinou qual o grau de instrução exigido, o que praticamente impossibilita a confecção de testes. Num país em que diplomas são comprados com imensa facilidade e onde existem tantos analfabetos funcionais, a tarefa dos juízes locais parece hercúlea. Por outro lado, o grau de instrução nada tem a ver com o caráter, com a ética, com a inteligência.Num país evoluído a sociedade filtraria o joio do trigo, na própria eleição.Sempre teremos os representantes que merecemos.
Semana passada aplicou-se a prova aos candidatos a vereador
--- Meu povo, ajude eu ! Os outro já comero que só rabicho de corda, de ladeira abaixo. Me dê uma chancha preu ir pra cama com o prefeito !
O outro aprovado por Dr. Zenivaldo foi o Bimba de Jegue que fechou seu discurso com uma verdadeira ameaça ao Estatuto do Idoso, coisa de fazer a turma da melhor idade tremer nas bases:
--- Meus amigo de Matozinho! Nóis precisa é de rodage pra levar nossos picuaio pra riba e pra baixo, na hora que der na veneta. Se eu for eleito vou abrir uma ruma de estrada nova e, o mais importante, meu povo, vou tapar os buraco das véia !
J. Flávio Vieira
De : "Matozinho vai à Guerra"
quinta-feira, 11 de setembro de 2008
Gesta

O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem..
Guimarães Rosa
Mitos são sonhos públicos,
sonhos são mitos privados.
Joseph Campbell
Era um menino na ingenuidade de seus seis anos. A imagem que lhe feriu os olhos, naquele dia vinte e sete de dezembro, do sequíssimo ano de 1958, lhe permanece ainda hoje indelével nas retinas, passados exatos cinqüenta anos. Um imenso cortejo fúnebre tomava toda a Praça da Sé e a Rua Padre Sucupira, dirigindo-se ao Cemitério Nossa Senhora da Piedade. O menino, atento, observava aquela serpente imensa, saracoteando qual um dragão chinês, composta de figuras tristes, circunspectas, sisudas. Sequer percebeu a gravidade do momento que ia bem além das suas fantasias infantis. Só muito tempo depois, soube que havia testemunhado o enterro de uma das personalidades mais míticas de todo Cariri: o Dr. Gesteira. Ele nos deixava no auge da experiência de vida, com meros cinqüenta anos . Neste tempo de revelação, o menino já havia se tornado médico. Por ironia do destino, adotado a mesma especialidade, Cirurgia Geral, daquele profissional estimado. Ele, prematuramente, naquele dia interrompia uma vida de quase vinte anos dedicados à salvar vidas, aplacar a dor, minorar o sofrimento do povo caririense.
Dr. Antonio José Gesteira nasceu em Recife há exatos cem anos. Formou-se no Rio de Janeiro em 1934. Fez sua especialização
Dr. Gesteira marcou profundamente a vida cratense nos dezoito anos que conosco permaneceu. Empregou todos os seus conhecimentos médicos e cirúrgicos , atendendo com uma presteza sem par todos os que o procuravam. A Casa de Saúde N. Senhora da Conceição faliu por duas vezes. Terminado seu apostolado entre nós , nada levou, deixou entre todos apenas a saudade que transcendeu gerações e ainda o faz hoje profundamente presente entre nós, tantos anos depois. Não bastasse sua atividade profissional, Dr. Gesteira era um intelectual do mais fino jaez. Poliglota, orador de recursos vastos, comovia e enfeitiçava platéias. Exercia ainda profunda atividade política, ligado a uma ala mais à esquerda da UDN, fizera-se, visionariamente, um anti-getulista fanático. Seus posicionamentos políticos levaram-no inclusive à prisão , tendo sido detido e levado à Fortaleza. Seu retorno ao Crato foi uma verdadeira apoteose, recebido com Banda de Música , por uma multidão de admiradores. Boêmio incorrigível, Dr. Gesteira conviveu com toda uma geração de grandes amantes da noite .
Toda esta trajetória de vida, no entanto, parece pouco para explicar a figura mítica
Onde acaba o homem e começa o mito? A vida beneditina do Dr. Gesteira certamente contribuiu pra isso. Toda a história de humanismo, de desprendimento e de carinho para com o sofrimento do próximo certamente o tornaram presente na memória dos caririenses. O advento da Cirurgia para o Cariri, trazida por suas habilidosas mãos, o fez muito especial. Seu desaparecimento prematuro, por outro lado, consternou toda a cidade e há de ter contribuído para que sua presença permanecesse tão forte entre nós. Mas , passados tantos anos, desaparecidos muitos dos testemunhas da sua geração, fica difícil entender a permanência prodigiosa do seu nome no inconsciente coletivo caririense. Talvez o que mais contribuiu para tanto tenha sido a dimensão humana do nosso esculápio. Dr. Gesteira tinha suas qualidades e seus defeitos muito à mostra, muito visíveis e isto o tornava profundamente humano. Numa sociedade em que a hipocrisia, o escamoteio, o disfarce e a máscara sempre se mostraram como utensílios de primeira necessidade nas nossas relações, o desnudamento do Dr. Gesteira o tornou um ícone de humanidade. Seu próprio nome indica esta capacidade de gestar, de gerar. Ele provou os dizeres de Campbell de que é entrando dentro do abismo que se descobre os tesouros da vida e que é onde exatamente você tropeça que está escondido este tesouro.
J. Flávio Vieira
sexta-feira, 5 de setembro de 2008
De Vidas Agudas e Mortes Crônicas

Antigamente se morria.
1907, digamos, aquilo sim
É que era morrer.
Morria gente todo dia,
E morria com muito prazer,
Já que todo mundo sabia
Que o juízo final viria
E todo mundo ia renascer.
...................................................
Hoje, a morte está difícil.
Tem recursos , tem asilos, tem remédios.
Agora a morte tem limites.
E em caso de necessidade,
A ciência da eternidade
Inventou a criônica.
Hoje,sim,pessoal,
a vida é crônica
p. leminsky
Recentemente o cinema perdeu um dos seus maiores ícones : esmaeceram os olhos azuis turquesa de Paul Newman. Ator em algumas dezenas de filmes, diretor premiado e um filantropo clássico daqueles que a mão esquerda não consegue perceber as doações que fazem a direita. A despedida de Newman trouxe alguns sinais perceptíveis da modernidade tecnológica em que vivemos. Acossado por um câncer pulmonar, após uma penosa via crucis de tratamento oncológico, ele simplesmente percebeu que chegara ao fim da jornada e, placidamente, pediu para se recolher à sua casa e morrer naturalmente junto com seus familiares mais queridos. O gesto resignado de Paul nos abre janelas para a reflexão sobre os rumos da ciência no mundo de hoje.
A medicina avançou no últimos cem anos muito mais do que o fez desde os tempos imemoriais até o Século XIX. Deixamos o empirismo de lado, afastamo-nos da magia, da bruxaria, dos encantadores de serpente, das sacerdotisas, dos barbeiros e das pitonisas. O Ato Médico deixou de ser algo mais do que uma simples pajelança. Descobrimos a origem e a cura de um sem número de moléstias, as especialidades médicas fizeram com que os profissionais aprofundassem o conhecimento de áreas médicas até então jamais perscrutadas. Junto a tudo isso, desenvolvemos um moderníssimo aparelho tecnológico que tem auxiliado como nunca no diagnóstico e tratamento de patologias várias. Cirurgia robótica, Vídeo-Cirurgia, Ressonâncias Magnéticas e tomografias; Rins , pulmões, corações artificiais; transplantes de múltiplos órgãos que pareciam arrancados da Ficção Científica hoje fazem parte do dia a dia de muitos Centros Médicos mundo afora. A população mundial aumentou consideravelmente sua esperança de vida e hoje convivemos com inúmeras figuras centenárias na nossa cidade. Vistos de hoje, os esculápios do passado carregam consigo um indisfarçável ar retrô. Seus partos feitos em domicílio, seus atendimentos de casa em casa, suas cirurgias heróicas, sua íntima relação com pacientes e familiares cheiram a bolor . O atendimento fora do ambiente estritamente hospitalar nos causam estranheza e muitas vezes pavor. Imaginar que seria possível atender com presteza pacientes sem as facilidades do computador, da Internet, da imagenologia soam como loucura clara, ampla e evidente. Sequer percebemos que os profissionais de saúde de outrora faziam exatamente o que hoje fazemos : utilizavam toda o conhecimento científico que tinham às suas mãos para lenir dores e curar doenças. No futuro seremos nós que pareceremos frágeis, superficiais e inconseqüentes para os avanços que ainda estão por florescer.
O avanço tecnológico vertiginoso dos últimos quartéis de séculos trouxe consigo alguns efeitos colaterais. A formação humanística do médico passou a ser pouco a pouco substituída pelo arsenal tecnológico. Aos poucos passamos a ver o paciente à nossa frente como tendo a mesma complexidade do DVD defeituoso examinado pelo eletrotécnico.O paciente deixou de ter emoções, paixões, frustrações. É hoje um amontoado de órgãos que são loteados entre diversos especialistas na busca de defeitos orgânicos concretos e palpáveis. Esquartejado igualzinho a Tiradentes após a forca. A relação Médico-Paciente, imprescindível à cura, existe hoje de modo formal e burocrático.Ninguém ouve ninguém, a História Clínica e o Exame Físico são meros artifícios para se solicitar os infalíveis exames complementares que haverão de selar o diagnóstico uno e definitivo. A tecnologia ungiu ainda os médicos de uma onipotência visível e cada vez mais perceptível nas novas gerações. Nossas decisões são definitivas e indiscutíveis. Permitimos, no máximo, discuti-las com colegas mais experientes. Tendemos, no entanto, a fazê-las passar totalmente ao largo da visão daquelas a quem elas são dirigidas: o paciente. As UTI´s estão repletas de muitos pacientes em vida vegetativa, fora de qualquer possibilidade terapêutica. Muitos que não tiveram direito a uma vida socialmente justa e , agora, sem direito nenhum sequer a uma morte digna, junto dos seus familiares, longe da gélida terapia intensiva. Na oncologia, onde os limites entre o Ser-Não-Ser, são mais próximos e visíveis , o humanismo se faz mais que necessário. A maior parte dos pacientes, diante da sentença capital, não busca muitas vezes a cura, mas o apoio, o conforto, a solidariedade. E qualquer médico sabe que quando não existe nenhuma coisa mais a se fazer em termos de terapêutica existe ainda uma infinidade de procedimentos a se providenciar em termos de humanismo.
A Medicina vem descobrindo que as gerações passadas de médicos têm uma imensa contribuição a dar neste aspecto. Próximos das famílias se faziam não só o técnico, mas o amigo, o conselheiro. Tratando seus pacientes no ambiente doméstico, não os expunha à frieza dos corredores de hospitais e das maternidades. Sabiam ouvir , coisa imprescindível a um bom profissional. A maior parte dos pacientes procura o consultório muitas vezes para serem ouvidos, pois na correria dos dias atuais, ninguém tem mais tempo de conversar com ninguém. Saber ouvir é tão importante quanto ter o conhecimento científico para prescrever. Pedro Nava dizia com propriedade que ,para o médico, ler Balzac é tão importante quanto estudar o compêndio de Medicina Interna.A morte, também, precisa ser entendida como um processo natural e não como a falência da Medicina. Devemos fazer todo o esforço para não transformar a morte a vista numa penosa morte a módicas prestações diárias. E é sempre bom lembrar que médico não tem cliente, tem paciente.
E mais que tudo: somos falíveis, frágeis e muitas vezes impotentes já que somos feitos da mesmíssima matéria dos nossos pacientes. A autonomia do paciente é assim uma verdade sagrada. Não temos o direito de prescrever um melhoral a qualquer paciente, sem sua expressa , clara e definitiva anuência, por mais penoso, duro que isto muitas vezes possa ser. É preciso entender definitivamente que a Medicina foi posta na Universidade na área de Saúde por mera decisão pedagógica, mas na realidade fazemos parte da área de Ciências Humanas. Não nos formamos técnicos em Medicina somos bacharéis em humanidades.
J. Flávio Vieira