Os primeiros hospitais e enfermarias do Cariri nasceram da obstinação do Padre José Antonio de Maria Ibiapina ( 1806-1883). Com a criação das Casas de Caridade, por volta de 1870, espalhadas pelo Nordeste, com base no trabalho de leigas voluntárias, devemos a ele a formação de nossas primeiras enfermeiras leigas. Ibiapina era um visionário, um gigantesco articulador social e em apenas dezesseis anos de atividade ergueu, segundo Gilberto Freyre, o maior projeto social, no Século XIX. Durante a Guerra do Paraguai (1864-1870) tivemos a figura de Ana Néri, uma enfermeira voluntária que hoje é uma das Heroínas da Pátria. A primeira Escola de Enfermagem Brasileira , a Alfredo Pinto, surgiu no Rio de Janeiro em 1890, seguida da mais famosa, a Ana Nery, fundada pelo Dr. Carlos Chagas em 1923. No Ceará, a Escola de Enfermagem só apareceria em 1943, junto da Sociedade São Vicente de Paula e só em 1976, a Universidade Federal do Ceará fundaria sua própria Escola. Hoje temos 700.00 enfermeiros no Brasil. Eles são um dos elos mais importantes da corrente da saúde, aquele que fica mis tempo e mais próximo ao paciente.
No Cariri cearense, a primeira enfermeira Ana Nery a aqui se estabelecer foi D. Neyde Esmeraldo Barreto, formada pela USP e aportando em Crato em 1965. D. Neyde chegou a iniciar uma vida religiosa como Congregada das Filhas de Santa Teresa de Jesus, abandonou o hábito depois, mudando-se para São Paulo, onde colou grau. Ela casou em 1967 com Dr. Paulo Cartaxo Esmeraldo, um dos pioneiros na Bioquímica da região. Esteve em plena atividade por mais de 20 anos no Hospital São Francisco de Assis, o pioneiro da região e na Maternidade do Crato. Voltou-se ainda para a medicina de coletividade , junto à Fundação Padre Ibiapina, coordenando vinte minipostos de saúde na zona rural , em algumas UBS´s da cidade e no Hemoce /Crato. Toda uma vida dedicada ao cuidar.
Ontem D. Neyde comemorou os seus noventa anos. Trabalhei com ela no Hospital São Francisco de Assis, quando fui diretor clínico por mais de vinte anos. Dividimos sucessos e agruras da nossa profissão. Sempre na corda bamba do circo dessa vida, onde basta um passo em falso para nos levar da saúde à doença, do bem-estar ao infortúnio, da alegria à tristeza. Queria deixar meu depoimento sobre ela, antes que a cortina baixe o pano e o espetáculo se encerre. A ideia que tenho é que ela apenas tirou o hábito de Santa Teresa, continuou sua atividade religiosa dentro da profissão que escolheu. Optou pela ação, além da simples contemplação. Tranquila, serena, sua simples presença já inundava de paz o ambiente em que estava. Era uma mensageira da esperança, mesmo quando ela havia totalmente se esfarrapado. Seu cuidar não era apenas uma sequência lógica de cuidados técnicos que trouxera da universidade. Ela tinha a mágica de saber tocar o coração das pessoas. Foi a mais empática dos profissionais com quem convivi. Mesmo quando diante do leito já não tinha mais nada a fazer, ela trazia o conforto, a mão na mão, a perspectiva de transcendência. Ela criou, na Maternidade do Crato, um grande projeto de adoção. São incontáveis os filhos que encontraram abrigo e pais, por conta da sua perspicácia. Em tempos em que não havia escolas para técnicos de enfermagem, D. Neyde foi responsável pela formação e treinamento de muitas gerações de Auxiliares , todos eles carregavam, claramente, a sua marca, não só no conhecimento técnico e cuidados, mas sobretudo na necessidade de pôr-se junto a dor e conflitos do paciente e seguir princípios éticos indispensáveis à nossa profissão. Nas refregas sempre inevitáveis entre colegas de equipe, D. Neyde era uma conciliadora, uma espécie de oráculo a ser consultado sempre que as coisas pareciam fugir do controle.
Neste 08 de novembro , D. Neyde chega à nona década de vida. Os anos não turvaram sua placidez, como os bons vinhos melhorou seu bouquê. É uma das últimas remanescentes de uma fase áurea da Medicina e Enfermagem, onde os remédios não eram tão diversos, mas a empatia, o amor, a solidariedade não tinham limites. Impossível escrever a história da saúde no Cariri, sem lembrar de Bernadete Gonçalves, Edite, Salvina Lucena , Tia Lídia, Carmélia e nossa querida primeira enfermeira caririense Neyde Barreto. Perto delas a gente sempre tinha a certeza de que a raça humana ainda tinha futuro, que há santos para além dos altares e que uma força superior parecia controlar as moendas do Universo. Para que Inteligência Artificial se tínhamos às mãos a Bondade Natural ?
J. Flávio Vieira
Crato, 09/11/25

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