segunda-feira, 21 de julho de 2025

Os Ínsipidos Jardins do Éden

 



 

                                                                                                            “O inferno são os outros”

                                                                                                                                         Sartre

 

                               No princípio , a Feira existia em função do desenvolvimento e aprimoramento da pecuária e agricultura. Os galpões e currais se abarrotavam de aves,  zebus, ovinos e caprinos, num berreiro sem fim que parecia berçário de maternidade. Negociavam-se produtos agrários e  plantéis de raças variáveis e até então desconhecidas. Os Bancos,  interessados também no negócio, rápido chegaram junto, como parceiros , intermediando as transações e catando e peneirando o lucro nas suas bateias .  Ao derredor da Feira se foram postando barracas de palha, como uma rudimentar praça de alimentação.  Com o fluxo de pessoas, aumentando a cada ano, era preciso alimentar os vaqueiros, os agricultores e os potenciais fregueses da feirinha.

                   Espontaneamente,  surgiu a pergunta silente: e à noite, transcorrido o dia de trabalho e de negociatas, não seria premente uma diversãozinha? Ninguém é de ferro ! E aí foram surgindo os arremedos de bares e de botecos, bem na periferia. Mantinham distância regulamentar,   como se temessem quebrar o ar solene da festa. A cachaça , naturalmente, exigiu trilha sonora e começaram a trinar as sanfonas, os pandeiros, os zabumbas e os triângulos que se foram multiplicando e poderiam até formar uma orquestra, se não houvesse muitos maestros e um repertório díspare e eclético: samba, coco, xaxado, marchinha e xote.  Sob o encanto da música e do aguardente, veio a dança , levantaram-se latadas e o forró comeu solto nas noites cratenses de julho. A festa, aos poucos, transformou-se de agropecuária em,  também,  festiva, dançante  e musical. E a música e a fanfarra começaram a invadir as barracas mais chiques e o picadeiro principal da festinha, aquele dedicado , inicialmente, apenas à exposição dos melhores plantéis de cada raça.  O lúdico , como sempre, se multiplica fácil e um dia Gonzagão puxou o fole no picadeiro central. Depois até Trio Elétrico animou as noites que fechavam os árduos sete dias da Exposição.

                   A música, como sempre acontece, criou marra, cresceu e foi preciso até   fazer um puxadinho para o mais chique clube cratense. Esticando a noite e a festa, a sociedade cratense ia para o  Tênis Clube e a farra varava madrugada adentro. Era uma luta contra o tempo !  Como era impossível esticar os alegres momentos, tinha-se  a possibilidade de ampliar,  com a noite,  a  festa que só durava sete dias, aqueles mesmos que o Criador usou no Gênesis, para a criação do universo. Transferida a festança para o puxadinho,  a música e a dança continuavam presentes e vivas no parque, apenas a sociedade encontrara um jeitinho de separar os bacanas do clube,   dos esfarrapados das barraquinhas periféricas.

                   Com o tempo,  o objetivo primeiro da Exposição se foi obnubilando pelo caráter festivo. A Festa virou um megaevento, tomou de assalto toda a região por uma semana, quebrou todas as fronteiras geográficas e o pandeiro, a sanfona e o triângulo se viram assolados por uma praga midiática de Sertanojos com sotaque do Country e Forrozeiros insulsos  e  Isoporizados. Shows milionários pra boi dormir, aliás, pra boi ficar a noite toda de olho grelado.

                   Estes dias também foram virando  um momento de encontro e reencontro de várias gerações de cratenses que aqui retornam, com ar saudosista, órfãos de uma antiga  bem-aventurança ,  como se perguntassem em que lugarzinho deixaram escondidos aqueles raios de juventude, banhados  de simples felicidade, onde a alegria brotava espontânea, como a água nas levadas dos pés de serra.    

                   A agropecuária mixou, a música regional sufocou. O que restou, afinal ? Existe vida para além dos acordes multimilionários da apoteótica Expocrato de hoje ?

                   Aquela primal festa da periferia da Exposição foi, pouco a pouco, empurrada, ladeira abaixo,  para a proximidade dos currais que abrigam os animais. Ali mantinha sempre um estrutura rudimentar, sem barracas estruturadas e padronizadas, como as da área nobre , em volta do picadeiro. Recebeu, depreciativamente, o nome de Infernim. A sociedade sempre a acusou de abrigar a ralé  da festa, o povinho, os descamisados, os cachaceiros e os namoros despudorados e  proibidos. Hoje, o Infernim, pasmem vocês, virou Cult. Poetas, intelectuais, estudantes, universitários, jovens fizeram do Infernim o seu paraíso, descobriram ali a antiga e glamourosa Exposição de anos atrás. Ali é possível ouvir ainda a música de raiz, os preços são convidativos, os petiscos  mais caririenses . E é possível  -- veja que coisa incrível --  até conversar.

                   Aldous Huxley perguntava : E se esse mundo for apenas o inferno de um outro planeta ? Na vida, se a gente reparar direito, alegria e tristeza, amor e ódio, saúde e doença são limítrofes e não têm fronteiras bem definidas. O céu e inferno são o anverso e reverso de uma mesma medalha. O inferno para nós cratenses não nos atormenta, o Infernim arrancou de nós o medo.   Como no Jogo da Amarelinha, as  frias noites de julho  mostraram que é possível saltar os dez números a partir do inferno, jogar a pedrinha do sonho no numeral desejado e alcançar, sem burocracias,  o Céu desejado. Aprendemos , com as noites de julho,  que entre o céu e o inferno a fronteira é tênue e que há mais alegria , música, leveza e verdade  do outro lado dos insípidos jardins do éden.  !

 

Crato, 17/07/2025


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