J. Flávio Vieira
O Cel. Orismar Garrido tinha um irmão, Oronildo, que morava em Serrinha dos Nicodemos. Anualmente alguns filhos de Oronildo costumavam passar as férias de meio do ano em Matozinho, sob a guarda, sempre atenta, do tio que armava campana para evitar possíveis danações e desvios de conduta da tropa que lhe era confiada. Naquele ano chegou , em lombo de cavalo, Clarinha, a mais nova filha do velho Ori , que trazia consigo todo aquele esplendor desabrochante da adolescência. A menina era meiga e doce, mas conhecida, desde a mais tenra idade, por ser determinada, impulsiva, destas que resolviam todas as pendências por conta própria, sem que necessitasse de ajuda de quem quer que fosse. Orismar recebeu a sobrinha como se filha fosse. Ele e Dona Deusa, a esposa, atapetaram o mundo de nove homenzarrões, sonharam por toda a vida como uma menina que teimou em não vir. Clarinha, assim, chegou iluminando a casa e preenchendo um vazio de muitos anos. E a menina soltou-se em Matozinho, na festa de Santa Genoveva, a mais animada da vila, encetou até um namorico com Creonildo , o filho de Janjão da Botica. Orismar, com seu SNI pessoal, soube da história e torceu o nariz. Tinha outros planos para Clarinha. Sem muitas delongas, chamou-a , numa tarde, na varanda da casa e não guardou reservas. Disse-lhe que já tinha um pretendente à altura da beleza da sobrinha. A menina, no entanto, ainda estava na fase de treinos e, esperta como era, nem pensava em partidas finais e decisivas. De qualquer maneira quis saber do tio, por mera curiosidade, o pretenso candidato a emendar seu o buço no bigode dele. Orismar, pragmático, foi direto ao ponto:
--- Ora, Clarinha, não podia ser melhor. Da nossa família ! Seu tio Gustavo! Ficou viúvo há uns seis meses, com cinco filhos no lombo. Nada como uma sobrinha para cuidar bem do tio e dos priminhos. O homem tem vida ganha, fazenda boa e gado a se perder de vista. Tá meio borocochô, com a cara desmantelada como lata de assar castanha, mas se você espremer direitinho ainda dá suco. Melhor que esses playboizinhos por aí amofinados e que não sabem se são coca-cola ou fanta. Como é , dá certo ?
Clarinha tinha um respeito danado pelo tio, mas não se controlou diante da proposta. Pensou logo que seria mais cuidadora e babá do que esposa. O pretendente, irmão do seu pai, já beirava os sessenta e puxava , ainda , uma récua de filhos. Saltou os cachorros na mata braba:
--- Gustavo ? Tu tá doido tio Ori ? Tu cheirou o cu dum bode ? Eu prefiro afogar Santo Antonio três vezes num copo d água, em busca de um noivo que preste, a me casar com aquele traste. Quem gosta de velho é reumatismo e fundo de rede !
Orismar até já se preparara para uma negativa da sobrinha, o que não engoliu foi a maneira ríspida com que a menina descartou seu irmão Gustavo a quem tinha muito apreço. Ficou bravo e disse claramente a ela que arrumasse os teréns que não queria mais ela em casa, não. Clarinha nem bateu a passarinha. Arrumou a mala e, no dia seguinte, já saiu no comboio a cavalo, de volta para casa: Orismar, ela e o vaqueiro Nèzinho de Penha.
De noitinha chegaram na casa de Oronildo que os recebeu com muita alegria, só estranhando a volta precoce da filha. Orismar, então, contou-lhe a história, principalmente da grosseria de Clarinha, na sua resposta. Oronildo, cara vermelha, fez coro à indignação do irmão e cuspiu a pena:
--- Ah, foi assim ? Deixa ela ! Eu garanto a você que nunca mais ela bota o pé em Matozinho. Eu quero é ver !
Clarinha, no entanto, já esperava a audiência e o julgamento. Não contava com a pena imposta que achou desproporcional ao delito. Não disse nada, ficou quieta, dirigiu-se apenas ao terreiro, procurou o vaqueiro Nèzinho e lhe pediu segredo total ao levar um recardo para Gustavo: aceitava casar com ele, corresse e viesse pedir a mão ao pai. E, na ponta dos pés, ralhou :
-- Eu quero ver quem vai me impedir de botar os pés em Matozinho ! Não nasceu ainda homem no mundo para me proibir. Era só o que me faltava !
O certo é que um mês depois Gustavo e Clarinha estavam casados. Até aí o plano tinha dado certinho como previra. Só alguns imprevistos. Brigavam mais que caranguejo sá encangado em corda. Dois meses depois, segundo falavam, já dormiam em quartos separados. Um quarto era chamado de Israel e o outro de Hamas. Cada um para um lado.
Uma tia de Clarinha, anos depois, hospedou-se na casa da sobrinha e quis matar a curiosidade. Observara que eles não se falavam, mas ao redor contou rapidamente sete filhos. Quis saber de Clarinha o mistério da intriga-disintriga. Como diabos era aquilo ? Os meninos eram feitos por e-mail ? Por laive? A menina, então, desvendou o mistério.
--- Tu não já viu nas escolas ? Na hora do recreio, não toca uma buzina ? Pois aqui também ficou acertado. Na hora de brincar, Gustavo não precisa falar nada. Ele balança um chocalho lá no quarto dele: hora do recreio !
A tia quis saber mais detalhes.
-- E se ele estiver emburrado e resolver não balançar. Entrar de férias ?
Clarinha já tinha a solução na ponta da língua:
--- Aí eu grito lá do meu quarto: Alguém tocou algum chocalho aí ou o boi daqui já num pasta mais ?
Crato, 12 de Julho de 2024
J. Flávio Vieira
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