J. Flávio Vieira
Cilistrino recebeu a notícia sem o estardalhaço que era esperado. Beirava os oitenta anos e
sabia, perfeitamente, que dobrada a próxima esquina , o mais provável é que lhe
aguardasse o precipício e não os campos de girassóis. Ouviu pelo rádio: ganhara
trinta mil reais no Cariri da Sorte em que arriscava pules há muitos e muitos
anos. Antes de um galardão a grana
deveria significar apenas um ressarcimento , um retorno de uma poupança.
Imaginou, de pronto, que a ex-mulher que o abandonara há muitos e muitos anos
poderia , subitamente, voltar a
apaixonar-se e os filhos, que não via há décadas, com
saudades repentinas agora sentiriam uma estranha ausência do pai. Os amigos do
barzinho o cumprimentaram sem disfarçar uma certa inveja e, os mais sensatos,
orientaram para que fizesse uma poupança, no aguardo das estações mais
turbulentas que se prenunciavam: de
remédios, de exames, de internações, de cirurgia e de pijama de tábua.
Cilistrino pôs as mãos
na bufunfa , que chegara de forma desavisada, mas sem o grande entusiasmo de
outrora. Viera meio fora de época, como uma micareta. Tinha lá sua animação,
mas não se comparava ao Carnaval. No dia seguinte, fez um plano de saúde,
imaginou que era um bom investimento para um velho já meio descascado. Projetou
em deixar um pouco na poupança e comprar um terreno no Cemitério e comprar um
plano funerário. Não queria dar trabalho nem despesa ao que ficassem ( não era
justo, se não ia legar herança material, deixar essa batata fervente na mão de
familiares que nem sequer o consideravam). Procurou uma funerária – “ Furdunço no Céu”—e
conversou com o corretor. O rapaz, cheio de mesuras e querequequés, o atendeu
com presteza e apresentou-lhe as possibilidades de planos funerários com as
mesmas desenvoltura de um agente de turismo: batizados, casamentos, Bodas de
Ouro. Docinhos como Bem – Morridos, Coroas
das mais variadas flores, lembrancinhas, Bandas musicais. Caixões de
vários formatos: guitarras ( para músicos ), livros ( para escritores),
Caixetes ( para farmacêuticos), Caixa de Aguardente para os pinguços, etc. E os
ginecologistas e urologistas ? interrogou para si mesmo. O agente funerário lembrou
que médicos ( não era o seu caso), como fornecedores da matéria prima, tinham
desconto especial. Quanto ao terreno no campo santo , possuía , também várias
opções e preços. Locais com vista privilegiada para a montanha, pontos mais
tranquilos e sem barulho, outros mais agitados para os roqueiros, por exemplo.
Podia, ainda, optar por música ambiente e wi-fi. Cilistrino, pensou um pouco, e
pediu tempo para pensar.
Voltou para casa
cabreiro. Tudo aquilo, nos finalmente, era prova inequívoca da vaidade sem
limites do homem. Lembrou de tantos, cheios de dinheiro, acumulado por toda
existência, simplesmente para florir depois o inventário. A vida passara ao
largo como um ginete veloz, e eles, pés fixos no chão, esqueceram de montá-lo.
Alguns ostentam agora o título de serem
os mais ricos do cemitério. Cilistrino, pensou com seus botões: depois da sua partida não havia qualquer
diferença entre o enterro e a cremação, o esquife de ouro ou o caixão das
almas, o túmulo suntuoso ou a vala comum. O pó é apenas o pó. Depois da
partida, a preocupação com o defunto ( o projeto do nada) é uma questão relativa aos que ficaram. Até porque
as poucas lágrimas e as lembranças cessam definitivamente após a missa de
sétimo dia. A morte não é apenas física é total e definitiva.
Os amigos do bar, nos
dias seguintes, viram um novo Cilistrino que surgiu em meio às notas da loteca.
Resolvera investir em vida o dinheirinho que lhe chegou como prêmio. Comprou um
carrinho, arranjou uma namorada nova, caiu nos bailes da vida e passou a
anestesiar um pouco o duro caminho a custas de conhaques e umas baforadas: que ninguém é de ferro. Disse aos amigos que
quando a velha da foiçona chegasse, não gastassem vela com defunto ruim: vala
comum, caixão das almas, nada de flores. O que ganhei na loteria gastara com
vida !
Crato,
03/11/23
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