O VELHO DO BANHEIRO
J. Flávio Vieira
“Na infância... Bastava sol lá fora e o resto se resolvia”
Toda manhã, despertado com aquele gosto de cabo de guarda-chuva na goela, olho para o espelho e chego a não reconhecer a imagem nele refletida. Remeto-me, imediatamente, a Rubem Braga: “Se o espelho refletisse bem, não refletiria certas imagens...” Do outro lado me olha uma figura estranha: cabelos enevoados e em desalinho; rosto atravessado por sulcos profundos, como os açudes secos do sertão; olhos com o brilho sugado por algum buraco negro e, por trás, uma alma cheia de canyons esculpidos tela talha do tempo. Quem diabos é esse senhor que já não é senhor dos próprios momentos e vontades ? Como ele passou a morar, sem que eu ao menos o compreendesse, na lâmina do espelho ? Por alguns ângulos aparenta traços familiares: um sorriso leve como voo de colibri que um dia saltou dos lábios do meu avô; um olhar profundo e inquisitório de madre superiora que algumas vezes vazava da fisionomia firme da minha avó; um discreto esgar do canto superior do lábio , nos momentos de tensão, que escapava do rosto da minha bisavó Madrinha Dona. No mais, aquele velho surge perfeitamente inusitado, um invasor como a “Loura do Banheiro” tão temida pelos meninos do meu tempo. Que forças sobrenaturais permitiram que se escondesse logo atrás do cristal do espelho ?
Custa a acreditar que , de alguma maneira, aquele senhor idoso aprisiona com sua carapaça um menino. É como se tratasse de uma gestação ao contrário. A criança não se desenvolve naquele que poderia ser um novo útero, para dar-se uma nova luz. O bebê vê-se enclausurado impedido de nascer e ganhar o mundo. É como um retorno à barriga primal para um desnascer. Sua incansável mobilidade será pouco a pouco levada à estática pela ferrugem dos dias. Sua poética inocência será turvada pela lava incandescente e antipoética do cotidiano. A criatividade e bulício serão embotados pela sucessão cansativa das linhas de montagem. Num determinado instante , o bebê retroagirá , em sua contra gestação, até alcançar a fase de óvulo. Neste fatídico dia, a imagem do fundo do espelho passará a ser real, já não mais existirá o menino, apenas o velho com sua casmurrice e seus achaques. Lá estará ele sozinho de boca mole balbuciando a contagem regressiva do big-bang.
Por enquanto, o velhinho continua me parecendo enigmático e misterioso do outro lado do espelho. Mas vou aprendendo a conviver com ele, um dia há de seu meu avatar. O menino ainda está vivinho aqui e não percebo como se aprisionado nos seus grilhões. Ainda agora o vi abrir a porta e sair ansioso procurando pelos cantos onde possam ter deixado o presentinho dos dias das crianças.
Crato, 12 de Outubro de 2023
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