sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

O Rio

 

                          J. Flávio Vieira

 

“Nada começa: tudo continua.

Na fluida e incerta essência misteriosa

Da vida, flui em sombra a água nua.

Curvas do rio escondem só o movimento.

O mesmo rio flui onde se vê.

Começar só começa em pensamento”.

                                                                                                      Fernando Pessoa

 

                                               Contemplando a geografia única da existência, há só uma verdade  inquestionável: o Rio flui. Encorpando-se desde a nascente, alimentando-se de incontáveis e múltiplos afluentes, ele flui. Às vezes nem percebemos o curso plácido das suas águas que parecem hipnotizadas pelas sombras do arvoredo ciliar, mas basta olhar o tapete de folhas secas flutuantes para termos a certeza inequívoca de que a corrente líquida tem vida e escorre pelas veias fluviais, lenta mas persistentemente. Outras tantas vezes, o seu fluxo  apressa-se, açoda-se , desce num turbilhão, carregando tudo que encontra pela frente, despencando em cascatas e cachoeiras. Aí não temos dúvida quanto à sua fluidez , impressionados com sua força e violência. E mesmo quando, nos períodos de estio prolongado, o rio transforma-se em poças espaças e, aparentemente, encontra-se morto e imóvel, ele apenas hiberna, prepara o bote para a enchente futura. Sua rota está traçada no chão como o espinhaço de uma serpente. As curvas do rio , cheias ou esquálidas,  demarcam apenas  o seu fio de eternidade.

                                    Vezes com águas turvas e barrentas, não conseguimos depreender sua profundidade e seus mistérios.  E até  mesmo com liquidez translúcida é sempre mais fácil beber a paisagem em volta, que muda como um caleidoscópio a cada instante e que é única e insubstituível e sem reprises,  do que entender  e vislumbrar e decifrar os enigmas guardados pela esfinge das profundezas,   por conta das deformidades em filtro da refração.

                                    Somos apenas baronesas flutuantes no curso d´água. Totalmente incapazes de definir a direção da rota. Cabe-nos apenas a inevitabilidade do movimento da nascente para a foz e é por ali onde nós e o ele  fluímos. Cada baronesa, embora todas participem do mesmo percurso, faz a sua própria viagem. O rio é sempre o mesmo, mas cada uma percorre um outro rio. As águas têm temperatura, transparência, velocidade, pureza diferentes. Estamos mergulhados no mesmo rio, mas flutuamos em rios diferentes.

                                    O destino final do desembarque, também, nunca sabemos. Algumas ficarão presos nas margens  iniciais . Outras afundarão com as primeiras marolas. As baronesas mais frondosas se desfolharão com o mergulho nas cataratas. Algumas poucas , por fim, submergirão a caminho da foz. Mas o rio, impassível, continuará fluindo.

                                    Com ou sem as baronesas ele continuará o seu fluxo. Até porque sabe que outras tantas virão para substituir as que soçobraram. Que marcas deixam as baronesas no curso das águas? Uma visão verde e breve do seu percurso errático, um vestígio fugidio como as pequenas ondinhas que a gota d´água desencadeia ao cair na superfície do rio. Maiores, mais enfolhadas, mais verdes ou ressequidas, menores e mais insignificantes, indiferente ! As baronesas são meros artefatos à deriva no leito , adereços efêmeros e meteóricos. A única essência é o rio que , ininterruptamente, flui.

                                    Olhares vesgos, observando de longe, até imaginamos que é o balseiro flutuante  que escorre em procura do mar, vezes mansamente , vezes em enxurrada. Mas a escumalha apenas cavalga o corcel lépido da vida. Somos cisco, sujeira, lixo, detrito, refugo embaçando a limpeza cristalina da superfície, uma sombra para o  rio que, negaceia, enigmaticamente,  e fui, indiferentemente,  com suas águas nuas...

 

Crato, 15/12/2022

                                      

3 comentários:

Joaonicodemos disse...

Caro escrevinhador, sua pena tem o talento dos grandes, e seu olhar poético perpassa os cantares de Quintana, os impessoais versos de Pessoa. O Rio em que navegas, não é um rio de águas e folhas, que se mensura aos quatrilhões de moléculas em movimento; as profundidades não serão medidas aos centímetros, ou quilômetros e suas quedas d`água poderão até cair para cima...
O fato é que o mensurável é diminuto, diante da transcendência da metáfora. Ou, por outra: não és um escritor materialista.
Parabéns por manejar tão bem as palavras!

Joaonicodemos disse...

Além disso, seu rio me impediu me afogar.

jflavio disse...

Abraço, João. Bom ver palavras tão fluidas como o rio.