sexta-feira, 8 de julho de 2022

Sete Palmos de Terra, Oito Pés em Quadrão

 


                                                                           J. FLÁVIO VIEIRA

                Val do Pai Mané rápido reconheceu que nunca na vida tinha passado uma pindaíba daquele tamanho. Parecia um daqueles castigos bíblicos como as pragas do Egito ou o fogaréu de Sodoma & Gomorra.  Família de cinco filhos pequenos, todos de bico aberto esperando a comida, como filhotes ansiosos pela volta do urubu cangueiro ao ninho.  Val tirava seu sustento aspergindo as cordas da viola e cantando suas loas mundo afora. O seu escritório era tão nômade como ele: bares, feiras, novenas, festinhas, sambas, aniversários, programas de rádio. Às vezes cantava sozinho e, mais frequentemente, arranjava outros cantadores para acompanhá-lo. Os desafios juntavam mais gente e criavam aquele clima de disputa, dividindo-se a plateia, rapidamente, em torcidas como se fora jogo de futebol. O ganho carregava a imprevisibilidade típica da profissão. Como monetizar o imponderável ? Como precificar algo fluido e irrotulável como o verso e a poesia ? Terminada a refrega os contendores somavam o que havia sido depositado no bojo do chapéu jogado a um canto do terreiro. Dias mais auspiciosos, outros de secura em feitio de cuspe de papagaio.

                                    “Essa é minha jornada

                                    Do nada sigo pro nada

                                    Como um bascui na enxurrada

                                    No rio da precisão

                                    Vivendo no pé da serra

                                    A vida toda se encerra

                                    Nos sete palmos de terra

                                    Nos oito pés em quadrão”

 

                        Se os dias normais já carregavam  consigo seus tons mais puxados para o cinza, os dois últimos anos , então, se tornaram uma via crucis para Val. Tempos de pandemia, de isolamento social. Os eventos públicos todos cancelados. Feiras, festividades, aglomerações, totalmente proibidas. Val ainda pôs a  mão numa esmola do governo, dada a contragosto e de má vontade. Voltou para a roça, tentando arrancar da terra algum sustento para a família que dividia o cardápio entre o ovo e o osso.   Ficava , à noite, matutando que pecados ele e os vizinhos tinham cometido para receber um castigo daquele tamanho. Perdera vários familiares com a peste.   No Natal não conteve o choro quando viu o seu filho menorzinho pedir a Papai Noel , de presente, um prato de decumê com um tiquinho de carne pro riba.

                        Nos últimos meses, as coisas melhoraram um pouco. Diziam que a praga parece que tinha ido embora, finalmente. Mesmo assim , as coisas não voltaram ao normal. No rastro de mortes da reima ficaram também as consequências da liseira generalizada e do desemprego. Além de tudo, a carestia estava como há muito tempo não se via. O dinheiro era minguado e, além de tudo, comprava bem pouco. Val, por outro lado, não podia aumentar o preço da cantoria: em rima não cabe código de barras.

                        Esta semana, num bar do Pai Mané, alguns filósofos de balcão se mostraram otimistas. Ia aumentar a esmola do governo. O velho Pedro Cidrão , no entanto, do alto dos seus oitenta e lá vai pedrada, mostrou-se cético. Aquilo era ano de eleição e político é danado pra inventar moda. Querem comprar nosso voto. É tanto que vai ser só até dezembro! Não é mais esmola, não, meus amigos, agora é extorsão. Alguns mais otimistas discordaram, o presidente tinha acordado, agora reconhecia a importância dos pobres e estava se penitenciando. Foi neste instante que Val sacou da viola e definiu o pacote de bondades oferecido pelo satanás.

 

                        SÓ QUEM CRÊ QUE ESSA TERRA É QUADRADA

                        QUE UMA PATA PARIU UM BOI ZEBU

                        E QUE O PAPA CASOU , SÓ ANDA NU

                        SÓ QUEM TROCA PIMENTA POR POMADA

                        E ACREDITA EM SACI, ALMA PENADA

                        PODE ACHAR QUE UM BICHO ESCONJURADO

                        SANGUINÁRIO, FEROZ E DESGRAÇADO

                        DE REPENTE SE TORNA PURO E SANTO

                        SAI PREGANDO E REZANDO PELOS CANTOS

                        ENTOANDO MARTELO AGALOPADO”

 

Crato, 08 de Julho de 2022


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