J. FLÁVIO VIEIRA
Val do Pai Mané rápido reconheceu que
nunca na vida tinha passado uma pindaíba daquele tamanho. Parecia um daqueles
castigos bíblicos como as pragas do Egito ou o fogaréu de Sodoma &
Gomorra. Família de cinco filhos
pequenos, todos de bico aberto esperando a comida, como filhotes ansiosos pela
volta do urubu cangueiro ao ninho. Val
tirava seu sustento aspergindo as cordas da viola e cantando suas loas mundo
afora. O seu escritório era tão nômade como ele: bares, feiras, novenas, festinhas,
sambas, aniversários, programas de rádio. Às vezes cantava sozinho e, mais
frequentemente, arranjava outros cantadores para acompanhá-lo. Os desafios
juntavam mais gente e criavam aquele clima de disputa, dividindo-se a plateia,
rapidamente, em torcidas como se fora jogo de futebol. O ganho carregava a
imprevisibilidade típica da profissão. Como monetizar o imponderável ? Como
precificar algo fluido e irrotulável como o verso e a poesia ? Terminada a
refrega os contendores somavam o que havia sido depositado no bojo do chapéu
jogado a um canto do terreiro. Dias mais auspiciosos, outros de secura em feitio
de cuspe de papagaio.
“Essa
é minha jornada
Do nada sigo pro nada
Como um bascui na enxurrada
No rio da precisão
Vivendo no pé da serra
A vida toda se encerra
Nos sete palmos de terra
Nos oito pés em quadrão”
Se os dias normais já
carregavam consigo seus tons mais
puxados para o cinza, os dois últimos anos , então, se tornaram uma via crucis
para Val. Tempos de pandemia, de isolamento social. Os eventos públicos todos
cancelados. Feiras, festividades, aglomerações, totalmente proibidas. Val ainda
pôs a mão numa esmola do governo, dada a
contragosto e de má vontade. Voltou para a roça, tentando arrancar da terra
algum sustento para a família que dividia o cardápio entre o ovo e o osso. Ficava , à noite, matutando que pecados ele e
os vizinhos tinham cometido para receber um castigo daquele tamanho. Perdera
vários familiares com a peste. No Natal não conteve o choro quando viu o seu
filho menorzinho pedir a Papai Noel , de presente, um prato de decumê com um
tiquinho de carne pro riba.
Nos
últimos meses, as coisas melhoraram um pouco. Diziam que a praga parece que
tinha ido embora, finalmente. Mesmo assim , as coisas não voltaram ao normal.
No rastro de mortes da reima ficaram também as consequências da liseira
generalizada e do desemprego. Além de tudo, a carestia estava como há muito
tempo não se via. O dinheiro era minguado e, além de tudo, comprava bem pouco.
Val, por outro lado, não podia aumentar o preço da cantoria: em rima não cabe
código de barras.
Esta semana, num bar do
Pai Mané, alguns filósofos de balcão se mostraram otimistas. Ia aumentar a esmola
do governo. O velho Pedro Cidrão , no entanto, do alto dos seus oitenta e lá
vai pedrada, mostrou-se cético. Aquilo era ano de eleição e político é danado
pra inventar moda. Querem comprar nosso voto. É tanto que vai ser só até
dezembro! Não é mais esmola, não, meus amigos, agora é extorsão. Alguns mais
otimistas discordaram, o presidente tinha acordado, agora reconhecia a importância
dos pobres e estava se penitenciando. Foi neste instante que Val sacou da viola
e definiu o pacote de bondades oferecido pelo satanás.
SÓ QUEM CRÊ QUE ESSA TERRA É
QUADRADA
QUE UMA PATA PARIU UM BOI ZEBU
E QUE O PAPA CASOU , SÓ ANDA NU
SÓ QUEM TROCA PIMENTA POR POMADA
E ACREDITA EM SACI, ALMA PENADA
PODE ACHAR QUE UM BICHO ESCONJURADO
SANGUINÁRIO, FEROZ E DESGRAÇADO
DE REPENTE SE TORNA PURO E SANTO
SAI PREGANDO E REZANDO PELOS CANTOS
ENTOANDO MARTELO AGALOPADO”
Crato, 08 de Julho de
2022
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