Por mais de uma vez já me tinham chegado, de Matozinho, histórias do Padre Vicente Antonio Petico. O reverendo era querido demais na vilazinha por suas muitas qualidades e por alguns defeitos que não tinham o poder de ofuscar sua história. Talvez, por isso mesmo, estivesse sempre tão presente no cotidiano da cidadezinha e suas peripécias catalogavam-se como uma Ilíada particular e bem humorada, impregnadas pela força das lendas e dos mitos. Vicente era ortodoxo e inflexível nos seus dogmas e rituais. Não permitia qualquer ato que viesse a conspurcar a sacralidade do seu templo. E defendia-o como um templário, sem qualquer receio em sacar da espada e dos pescoções se necessário fosse. Puxar orelha e dar cascudo em menino irrequieto; excomungar pecadores recorrentes; deixar no altar noivo aguardando noiva retardatária; expulsar fiéis com vestimentas inadequadas como vestidos decotados, minissaias, chapéus atolados no topete... apenas repetiam os antecedentes do chicote em lombo de mercadores nas portas dos templos. Por outro lado, uma virtude aproximava-o dos seus fiéis. As palavras do reverendo nunca se distanciavam das suas ações. Jamais se soube de qualquer desvio nos muitos anos que apascentou seu rebanho em Matozinho. Nem quanto ao celibato, nem quanto à rigorosa prestação de contas dos óbolos e das quermesses. Por baixo da casca grossa e espinhosa, existia uma polpa doce e macia. Semana passada, Eufrazino, um amigo que mora em Matozinho, me enviou uma cartinha com a lembrança de mais uma história do Padre Vicente. Colecionando-as , quem sabe, daria para escrever mais um livro das Mil e Uma Noites. Tudo se passou nas Bodas de Aderogildo e Cananéia. O casal namorara por mais de dez anos , desde a adolescência, e ficara conhecido demais em Matozinho. Dedé, como ficou conhecido de todos, montara uma pequena bodega na vila que se foi sortindo com o passar dos anos e Caná fizera-se uma das costureiras mais afamadas da região. Depois dos acontecidos, a história envolvendo o casal e o reverendo ficou conhecido como As Bodas de Caná. Os noivos tinham muitos pontos em comum, no entanto carregavam duas qualidades que potencializavam , em meio à calmaria, metralhas de trovões e de relâmpagos. Dedé era sistemático demais e opinioso, desses que entendiam só existirem dois tipos de opiniões no mundo a dele e a dos equivocados. Cananéia, por outro lado, sempre se mostrou direita , correta e de palavra irretornável, mas muitas e muitas vezes era intransigente e bruta como apito de navio. O certo é que os dois pólos positivos da bateria, discordando da física e da eletricidade, terminaram por se atrair e os dois bicudos, há dez anos , entre altos e baixos, estavam a provar que beiçudos se beijam, sim. Melhoradas as economias correram os banhos com o Padre Vicente e marcaram o casamento. No dia aprazado, a igreja de N. S. dos Desafogados entupida de amigos, Dedé e Caná puseram-se, no altar, no horário matematicamente combinado. Estavam ali postos, imaginaram os convidados, três cantos de carroceria: o noivo, a noiva, o pároco. Cananéia mantinha o cenho meio franzido, como se tivesse engolido um chá de jalapa. Na entrada triunfal, carregada pelo pai, dera com a presença em um dos bancos de uma prima sua: Gilbertina. A cara de quem engole suco de limão fora por causa do retorno da fita do filme da sua vida. Anos atrás, soube que Dedé tivera um rolo com ela. As coisas depois se ajeitaram, mas ficou sempre aquele travo como de quem chupa caju, agora reavivado na goela com a presença incômoda da prima. Caná manteve-se ali de pé, meio longe, sem nem dar por conta das palavras derramadas pelo Pe Petico. Despertou quando foi chamada ao juramento que sagraria o contrato: “Cananéia, aceita como seu legítimo esposo, o senhor Aderogildo, promete amá-lo e respeitá-lo por toda sua vida, até que a morte os separe ?” . Ainda em meio ao transe e o replay do filme da traição, fincou os pés : --- Aceito, não ! De jeito nenhum ! Foi uma celeuma infernal. O padre tomou um susto, as famílias embranqueceram, a mãe da noiva desmaiou. Dedé, simplesmente fechou a cara e saiu rápido da igreja sem dizer palavra. A dissolução do casamento deu pano pras mangas na vila e foi assunto de fofoca por muitos meses. O noivo ausentou-se por mais de um mês, seguiu para casa de um amigo em Serrinha dos Nicodemos. A noiva não encompridou conversa, disse apenas que resolvera não aceitar e pronto, ninguém tinha nada a ver com sua atitude. Passados uns seis meses, a turma do cerca-lourenço iniciou uma reaproximação. Sempre difícil e complicada, com amargor e fel vazando pelas beiradas dos cálices. Depois de mais de um ano, por fim, o casal resolveu voltar ao altar e selar o compromisso que tinha ficado em suspenso. Após dez anos de noivado, ficava quase impossível arranjarem outros parceiros. Já eram Caná de Dedé e Dedé de Caná. Viram-se novamente diante de Padre Vicente que celebrar a cerimônia. Esse muito a contragosto e avisando que aquilo ali era um templo e não uma delegacia, e não tinha fiofó pra fuxico, não ! Desta vez na igreja, face aos antecedentes , tinha convidado montado na cacunda do outro. Temeroso, Pe Vicente fez a pergunta fatídica , do “aceita como seu legítimo esposo”, a uma Cananéia bem mais feliz e sorridente. Ela enfaticamente disse o “Sim” em alto e bom som. Quando Pe Vicente interrogou o noivo sobre o seu aceite, veio-lhe na mente, rápido, toda a vergonha que tinha passado, na outra tentativa e resolveu dar o troco: -- “Aceito não, de jeito nenhum !” A confusão fez-se dobrada. Pe Vicente , furioso, deu um pesqueiro no noivo . A noiva caiu no pranto, acolhida pelas famílias. Dedé saiu empertigado e lépido, feliz com o troco dado ao desaforo que sofrera. As famílias sabiam, perfeitamente, que os noivos se gostavam e que aquilo tudo devia-se apenas à arrogância dos dois e ao orgulho. Agora que o placar estava 1 X 1 entenderam que era preciso deixar o tempo correr e, passadas as mágoas, baixada a poeira, tentar novamente levá-los ao altar. Dois anos depois, conseguiram seu intento. Imaginaram que a dureza seria convencer Pe Vicente que já tinha perdido por duas vezes seu tempo e não era pau de se vergar com facilidade. Ficaram os padrinhos impressionados com a receptividade do vigário: -- são coisas que acontecem , faço o casamento, sim, com o maio prazer ! Finalmente, pela terceira vez, após uma dura preleção dos pais do casal , Dedé e Caná voltaram ao pé do padre. Vicente estava alegre, simpático e radiante. Falou sobre a importância do matrimônio, sacramento que ele tinha em conta maior. Lembrou os acontecimentos anteriores , relevando-os: o melhor é que assumissem com plena convicção e certeza. Perguntou a Caná se ela aceitava o esposo, tendo o imediato assentimento; retornou a pergunta ao noivo que firmemente jurou fidelidade eterna e compromisso até a chegada da velha da foiçona. Pe Vicente, então, solenemente, antes da bênção final , calmamente disse: --- Ah ! Quer dizer que Cananéia agora aceita ? E Aderogildo também quer casar ? É ? É? Pois agora quem num quer é Vicente ! Segundo Eufrazino, o pároco tirou a batina ali mesmo. Deu um muxoxo , sapecou uma banana para os nubentes e foi-se embora sacristia adentro.
Crato, 05/11/2021
2 comentários:
Amo ler essas histórias. Muito bom.Show de literatura e sentimentos.
Abraço, Lucinha ! Obrigado pela leitura e pelas palavras
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