J. Flávio Vieira
Passou a ser conhecido,
carinhosamente, por Lito. Desde menino, Carmelito mostrou ao mundo a que veio. Irrequieto,
cheio de mutretas e de trapaças, não passava um só dia sem pregar uma peça em
alguém. Jogava pedras nas vidraças de vizinhos, sorrateiramente; tocava a
campainha de todas as casas por onde passava; atirava detergente em aquários;
soltava passarinhos das gaiolas Nos
jogos de rua, então, era um terror. Roubava as bolas de gude dos companheiros,
lascava as carrapetas nas rodas de pião. Não o escalar para um time era motivo
para, na primeira oportunidade, ele furar a bola com algum canivete e escapar
em desabalada carreira. Na escola , pensou-se que aquietaria o facho : ledo
engano ! Virou um especialista no gazeteio de aulas e um master chef em pescagem nas provas. Espalhava as colas por lugares mais inusitados
: banheiros, fundos de cadeiras e escrevia-as pelo corpo numa espécie de
tatuagem temporária. Sua mais tradicional forma, no entanto , era colocar o
papelzinho com a pesca atrelado a um arame e , quando todos estavam sentados
resolvendo as questões, ele, calmamente, enganchava o aramezinho no colarinho do colega sentado logo à sua frente
e ficava, tranquilamente pescando, como um músico olhando uma partitura. Numa
das provas de Física, escondeu o teste e entregou um papel em branco ao
professor que naquele momento estava meio distraído. Procurou, ao sair, um
colega cobra, de um série superior, pediu que ele resolvesse para ele aquela
pedreira. Depois, à noite, dirigiu-se à
casa do mestre e colocou a folha de
papel por debaixo da porta, com todas os quesitos rigorosamente resolvidos. No dia da entrega das notas, o professor comentou sobre a nota 10 que ele
tinha alcançado e ainda sobre a sorte do rapaz:
--
Quase perco sua prova,meu filho ! Encontrei no chão já indo pro lixo ! Que
sorte, hein ! Que sorte !
Crescido,
novamente, todos imaginaram que Lito ia tomar jeito. Que nada ! Os casamentos
se sucederam e também o relato seguido de negócios enrolados, de contas a pagar
que tomavam fila maior que a da vacinação. O último dos matrimônios foi com D.
Risalda. Eles , seguindo as regras da
eletricidade, atraíram-se : ela era o posto dele, a fase positiva da bateria.
Religiosa, carola, direita, metida em
obras sociais e na ajuda dos mais desfavorecidos. Herdara tudo do pai , o velho
Nezim Torquato, um português bonachão e que instalara uma padaria na cidade, “Pra
variar, gajo ! Como comentava, alegre, com
os patrícios !
Lito continuou com suas tramoias,
agora já nem tão necessárias, uma vez que vivia, comodamente, sobre as asas do
sogro. Quando dava um prego numa barra de sabão tinha que tirar férias de pelo
menos seis meses. Tanto que passou a ser
conhecido por “Lito de Nezim”. A última
das suas presepadas foi a venda de uma vaca holandesa, famosa, toda rajada de
preto e branco e que, segundo ele, dava mais de vinte litros de leite coado.
Quando o novo proprietário cobrou sentido, descobriu que a vaca tinha quatro
peitos perdidos e a raça da futura reprodutora da fazenda perdeu-se no primeiro
banho. A vaquinha, simplesmente, nunca jogou na mesma seleção de Cruyff e Lado. No primeiro banho, as
manchas negras saíram. Lito tinha pintado
algumas máculas numa vaquinha
branca pé duro que ele tinha recebido num rolo.
Dias atrás, Lito de
Nezim foi acometido de um mal súbito e caiu durinho . No enterro comentava-se ,
a boca miúda, que aquele tinha sido o único caso conhecido de um cabra que
depois de bater as botas não se transformou em bom, direito, rico e bonito. Até
o padre Salustiano, na encomendação, deixou a impressão que cem anos de
purgatório, com tornozeleira eletrônica, ainda não iam dar cobro no desmantelo de Lito.
Depois da missa de
sétimo dia, uma Risalda chorosa foi fazer a visita de cova do marido e , lá
encontrou um epitáfio, rabiscado em uma cartolina e pregado com cera de vela,
em cima da pedra de mármore da tumba:
Enfim preso aqui no chão
Um cabra sem formação
De procedência ruim.
Fraco, safado e sem
linha
Perdeu o nome que tinha
Virou Lito de Nezim.
Crato, 27 /08/ 2021
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