J. Flávio Vieira
Em Matozinho, em tempos remotos , os
prefeitos , de dois partidos principais e únicos que se iam alternando no
poder, mantinham uma lisura financeira difícil de se imaginar nos dias de hoje.
Uma das razões disso é que sobrenadava uma ética natural naquela geração, onde
o mais desgraçado dos homens era tido como o velhaco, o larápio, o bate fofo.
As campanhas, por mais ardentes e inflamadas que fossem, esbarravam em fofocas
como: “Todo mundo sabe, o Coronel Filismino tem uma amante, na rua do Caneco
Amassado”; “Pedro Cangati é fraco que só caldo de andu!” e potocas afins.
Espalhar conversa que este ou aquele candidato era ladrão, metido em falcatruas
ou que não pagava a gente vivo era motivo para duelo de trabuco no primeiro
encontro entre as partes. Talvez , também, um outro motivo para o fastio dos
edis por verbas públicas fosse a escassez delas: os municípios viviam
praticamente da pouca arrecadação de impostos e havia notícias de que, algumas
vezes, alguns tiveram que meter a mão no próprio bolso para saldar as dívidas da
cidade.
Ah ! Mas aqueles bons tempos passaram rápido na
marcação do velho relógio da casa do Coronel Anfrízio Maia. Os últimos
prefeitos de Matozinho perderam, totalmente, esse sobroço de misturar o
dinheiro público com o privado. Outras
eras, outros costumes: os políticos
foram alisando a cara e engrossando o lombo e adjetivos como vigarista, gatuno,
picareta e treteiro passaram a ser elogios. E os eleitores até sublimavam os
pecadilhos: “Ele tá certo ! Tem que tirar o dele, só são quatro anos !” Anos se
passavam e quem visitasse Matozinho, com intervalo de dois lustros, a única
modificação que perceberia na cidade era uma ou outra casa que tinha ruído. As
obras dos prefeitos ficavam sempre para o ano eleitoral e se resumiam a :
inauguração de lombada, instalação de um orelhão, pintura de meio fio, uma
demão de cal na fachada da prefeitura. Coincidentemente, se a vila ia caindo
aos pedaços, os políticos, por outro lado, estranhamente, iam muito bem: casas
novas, fazendas compradas, camionetes de duas cabines.
Naquele ano,
no entanto, crimes de peculato que eram sussurrados de língua em língua, na
praça de Matozinho ,terminaram por ter uma grande repercussão em todo o estado.
E as razões do vazamento do escândalo só depois se descobriram. Sinderval
Bandalheira, prefeito em exercício da cidade, no seu quarto mandato, era
adversário ferrenho do governador. Aquele era um ano eleitoral e o chefe do
poder executivo do estado lançou um candidato próprio: Beroaldo Siriema , com o intuito de aniquilar, definitivamente, a
reeleição de Sinderval. Providenciou, então, uma devassa nas contas do
município, na certeza de que, armado o fojo, pegaria rápido um preá graúdo. E,
como era de se esperar, a caçada não demorou muito. Os auditores descobriram o golpe
que terminou famoso em todo o estado e que foi denominado de “O Escândalo do
Vatapá”. Naquele ano específico, de janeiro até junho, Matozinho tinha
adquirido, para merenda escolar, cinco mil litros de Azeite de Dendê.
Quando a
notícia explodiu na imprensa da capital, a Câmara de Matozinho, cutucada pelos
poucos vereadores de oposição, resolveu abrir uma sindicância para esclarecer,
definitivamente a denúncia e, claro, de quebra, arrochar os quibas de
Sinderval. Antes de chegarem aos denunciados: o Secretário de Educação,
Anacleto Analfa, e o prefeito Bandalheira
, os vereadores convocaram o professor de aritmética Cincinato Boca Mole para
emitir um relatório preciso sobre o pretenso delito cometido pela administração
local. Depois de uns quinze dias, documento pronto, marcou-se reunião da Câmara
com a presença do prefeito e do seu
secretário, tendo sido combinado que, após a leitura seriam os dois
sabatinados. Cincinato , solene, com a fala pastosa e cuspirenta que terminou
por impingir-lhe o apelido de Boca Mole, foi didático e prolixo na sua apresentação:
--- Depois
de vasculhar os documentos e notas fiscais mais frias que bunda de anjo, fiz
uns cálculos algébricos sobre a utilização dos cinco mil litros de azeite de
dendê. Pelas minhas bausas, daria para fazer: cento e trinta latas de querosene
de Vatapá, dois mil e quinhentos acarajé, oitocentos e trinta e cinco panela de
caruru e , pelos menos, uns onze mil bolinhos de abará. Daria, ainda, para
preparar moqueca de pelo menos umas cinco baleias cachalote. Visitei o Grupo
Escolar de Matozinho e, conversando, com os vinte alunos da profa. Mundinha
Azevedo, eles me informaram que o único peixe que tinham comido, até hoje, era uma tal de sardinha com cuscuz. Revirei a
despensa e encontrei lá umas cinco dúzias de azeite, perguntei às cozinheiras
da escola o que era aquilo e elas me disseram que não sabiam direito, achavam
que era óleo de freio.
Interrogados,
depois, Sinderval e Anacleto desconversaram, não se lembravam de nada e
disseram que tinham comprado o dendê, parece, pelo preço muito acessível, só cinquenta reais
o vidrinho. Estavam bebendo uma lapada no Bar do Giba quando o vendedor, que
não conheciam, os procurou e propôs a
venda do azeite.
Cincinato
ouviu as perguntas dos vereadores atentamente e acompanhou as respostas com a
Boca mais rígida do que normalmente. Só no final dirigiu-se a Sinderval e
Anacleto com uma última interrogação.
--- O
prefeito e o Secretário podem me dizer quantos sacos de sabugo, quantas litros
de chá de olho de goiaba e quantas moitas de pião roxo vocês encomendaram junto com
o pedido do azeite de dendê ?
Sinderval e
Anacleto confusos responderam quase em uníssono:
--- Sabugo,
óleo de goiaba, pião roxo ? Tá doido , é? Pra que encomendar isso, seu
Cincinato ?
--- Nada
não, amigos ! É que estive pensando aqui: cinco mil litros de azeite de
dendê dá caganeira pra ganhar do Cólera!
Nem no Planalto ! Fiofó de menino vai funcionar aqui de fazer bico como beiço
de chumbeiro e tocar frevo como o trombone do maestro Chico Baião nas retretas
do sábado de aleluia!
Crato,
09/07/2021
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