J. Flávio Vieira
Zenóbio , desde miudinho, era destrambelhado. Desses que a ordem natural das coisas conspira naturalmente contra eles ou vice-versa. O pai lembrava que já no parto ele quase tora a mãe no meio: resolveu vir de través e a bundinha viu a luz primeiro que os olhos. Cresceu como menino mártir, desses que têm uma atração quase predestinada pelos acidentes domésticos. Pedras voadoras procuravam sua testa, quedas fraturavam suas canas, como por encanto, doenças de criança tinham uma atração quase gravitacional por Zenóbio. Até dormindo, aquele fatalismo congênito não lhe dava sossego: cacos de telha desprendiam-se do teto em procura do seu corpo, marimbondos de chapéu assustavam-se e achavam guarida nos seus beiços.
Mesmo crescido, a saga martirológica de Zenóbio não se aplacou. No primeiro emprego comprou um fusquete e , de tanto bater pelos cantos e nos outros carros, recebeu o apelido de “Pestana”. Sempre conseguia provar que era possível, sim, fazer com que a curva mais reta terminasse empenada em tortuosa curva. Ainda bem que esses desacertos não o tiravam do sério. Passaram a fazer parte da sua vida , recebia cada gafe, cada cabeçada com muito bom humor. E desses disparates se foram tecendo as histórias do nosso “Pestana” , catalogadas , cuidadosamente, pelos amigos mais próximos. Arranjou um empregozinho como funcionário da Câmara de Vereadores e foi sopa no mel. Eram tantos as mancadas dos políticos que empanavam, totalmente, as peripécias de Zenóbio. O salário não era lá essas belezas, mas , reconhecia, era pago regiamente para o trabalho que executava: enfiar bufa em cordão.
Um dia aposentou-se. Os anos tinham passado sem jamais testemunhar uma gota de suor deslizando da testa do barnabé. E aí, nosso destrambelhado, para o terror da esposa Quininha, voltou para suas traquinagens redobradas em casa. Imaginem, aí, o tamanho do desmantelo ! Preso num território totalmente desconhecido e inóspito, sob justificativa de economia de gastos, Zenóbio se auto-intitulou o “Consertador Geral” do lar de Quininha. Para tanto, convocou, sob suas ordens, o filho mais novo, Guiga, como auxiliar de eletricista, bombeiro, engenheiro eletrônico e servente de obras.
Um dos primeiros dos 12 trabalhos de “Pestana” foi o conserto de goteiras que ele cismou estavam umedecendo a sala de jantar. Com ajuda de uma escada velha, subiu na cumeeira da casa e saiu pisando e quebrando telhas, em busca de consertar o possível vazamento. Guiga postou-se embaixo, na sala, orientando a possível localização do pinga-pinga. De repente, os caibros e ripas velhos cederam e o nosso Zenóbio esparramou-se por cima da mesa grande, trazendo na sua companhia a metade do teto. Um braço engessado, duas semanas e três pedreiros depois, “Pestana” explicava ainda a uma Quininha incrédula e chateada que a culpa era da madeira dos caibros e ripas:
--- Quininha, fizeram foi com marmeleiro! Queriam era me matar !
Não tinha passado um mês, nosso operário doméstico padrão convocou, novamente, Guiga, para outra missão heroica. A televisão da sala estava chuviscando muito e ele tinha certeza que era um problema no posicionamento da antena. Cabreiro, ainda com o braço no gesso, mandou o menino subir na crista da casa e ir, lentamente, rodando a antena. Lá de baixo, Zenóbio observava a melhoria na qualidade da imagem, até que gritou:
--- Guiga, pode parar aí ! Tá uma beleza a imagem, coisa de cinema ! Eu não disse !
Quando o filho desceu, chegando na sala, deu com o pai remexendo no fundo da televisão, agora com o tubo de imagem virado para a parede.
--- Pai, que diabo tu tá ,mexendo aí ! A imagem não ficou boa ! Bula não !
Calmo, com voz arrastada, Zenóbio explicou:
--- É, ficou ! Mas eu vi aqui que tem um fiozinho solto! E fio solto tem seu lugar, Guiga !
Apreensivo, conhecendo a fera, o rapaz alertou :
--- Mexa , não, pai ! Tá bom ! Pode piorar !
Nem adiantou muito, agarrado no fio solto, “Pestana” enfiou-o num buraquinho próximo de uma válvula:
--- Fio solto tem seu lugar, só pode ser aqui, Guiga !
Antes que o menino alertasse, ouviu-se um estrondo fenomenal e subiu uma fumaça preta parecida com um cogumelo atômico. Segundos depois, uma imagem coberta de fuligem saía do meio do fumacê, só os olhos estavam brancos. Aquele saco de carvão aproximou-se do um menino trêmulo e prestes ao pernas-pra-que-vos-quero e sintetizou, calmamente, o resultado final do conserto eletroeletrônico da antiga TV de D. Quininha:
--- Guiga ! Queimou...
Crato, 09/04/2021
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